furto do paraíso: o novo cinema tcheco dos anos 1960

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Há um buraco na minha cortina – canta uma aspirante a estrela do rock num dos primeiros filmes de Miloš Forman, Concurso (Konkurs, 1963), em refrão que parece tripudiar, com humor tipicamente tcheco, do cenário que favoreceu não apenas a existência de um jovem cinema no país, mas toda a onda de novos cinemas em terras que viviam estreitamente vigiadas entre os anos 1950 e 60. Certamente não estava no roteiro dos burocratas que grandes nomes do leste como Jerzy Skolimowski, Miklós Jancsó e Dušan Makavejev1 construíssem, ainda que de forma breve, uma filmografia radical e sólida em seus próprios territórios, a ponto de serem rapidamente alçados ao pódio das referências cinematográficas modernas dos anos 1960. Especificamente na Tchecoslováquia, a ausência de um nome basilar – mesmo considerando a popularidade inegável de Forman e o reconhecimento quase unânime à singularidade da obra de Věra Chytilová – sinaliza que o rombo foi ainda maior.

Hoje é fácil verificar tal constatação: ao olhar para a produção jovem tchecoslovaca (contando os filmes realizados em Praga e em Bratislava), encontramos mais de 30 nomes destacáveis e quase uma centena de filmes importantes. No especial que a revista Cinéma 67, Le Guide du Spectateur fez sobre o país em agosto de 1967, Pierre Billard assinala que a Nouvelle Vague Tcheca vivia o status de cinematografia a ser olhada com cuidado pela crítica francesa: “vinte cineastas de talento realizaram em três anos um, dois ou três filmes marcantes. O que já seria excepcional para uma grande nação produtora, é fenomenal para um país de 14 milhões de habitantes”. Também é preciso considerar que a Tchecoslováquia sempre foi encarada como um canto menor na história do cinema, com alguns lampejos de popularidade – os escândalos eróticos de um Gustav Machatý nos anos 1930 ou o reconhecimento quase unânime à excelência de Jiří Trnka no campo da animação no pós-guerra. Certamente não foi por capricho publicitário que a onda cinematográfica na década de 1960 recebeu a alcunha de “o milagre do filme tcheco”.

Se a existência plena de uma Nouvelle Vague Tcheca só foi possível graças à abertura política e cultural que culminou na Primavera de Praga em 1968, o enorme rasgo na cortina teve na produção cinematográfica2 um de seus principais cavalos de batalha. Por isso não é estranho notar que, apesar de ter durado poucos anos (a rigor, 1962-1970), o surto dos jovens filmes na Tchecoslováquia foi provavelmente mais diverso que o de cinematografias que pautaram a modernidade como França e Itália. Em entrevista recente a Peter Cowie (autor de Revolution!, livro que mapeia o surgimento dos novos cinemas na década de 1960) Forman relembra a arquitetura histórica inusitada que possibilitou a série de rupturas.

Quando eu penso hoje sobre todo o período sob o comunismo, é uma situação muito estranha, porque quando eles tomaram o poder em 1948, a principal revolução na indústria cinematográfica foi que os produtores tornaram-se sinônimo de capitalismo. Então o papel deles diminuiu para algo equivalente ao de um contador, o que significa, paradoxalmente, que os realizadores (o diretor e o roteirista) tornaram-se reis. Contanto que você estivesse de acordo com a ideologia oficial do Realismo Socialista, você poderia até mesmo viver como um rei. Mas isso era virtualmente impossível durante o primeiro período, de 1948 até o início dos anos 1960, porque toda a produção estava sob o controle cerrado não dos produtores, é claro, mas dos ideólogos. Após o discurso de Khrushchev3 no vigésimo congresso do Partido Comunista na União Soviética, de repente a situação política tranqüilizou um pouco, algo que criou uma situação absolutamente ideal. De repente nós estávamos permitidos a fazer nossos filmes do jeito que queríamos, e nós éramos os chefes.

O cenário favoreceu, sem sombra nem trens de dúvida. No entanto, o problema de considerar apenas a conjuntura política ao tentar compreender a NV Tcheca é o de embalsamar uma produção riquíssima como um mero reflexo de uma abertura cultural – ou ainda, o que é mais grave, cair no equívoco de ver tais filmes como manifestos de oposição ao regime. O afrouxamento ideológico e a situação paradoxal promovida pela nacionalização da indústria cinematográfica foram fatores que possibilitaram as condições para a existência plena da NV Tcheca, mas de forma alguma conseguem explicar a quantidade de grandes obras que surgiram ao longo dos anos 1960.

A primeira onda

Questionado sobre a diferença entre as gerações dentro do cenário cinematográfico da época, Jaromil Jireš respondeu à Jeune Cinéma (dezembro/1964): não é apenas a idade que define uma geração, é um espírito. Mas há uma diferença entre os colegas mais velhos e nós, que tiveram experiências de vida bem diferentes: eles conheceram, já adultos, a guerra, a formação e os primeiros anos da república; nós ainda somos crianças.

Jireš se refere à geração do pós-guerra que deu os primeiros passos, ainda nos anos 1950, na renovação cinematográfica do país – entre os nomes mais importantes, estão Vojtěch Jasný, Jiří Weiss, Ján Kádar & Elmar Klos, Karel Kachyňa, František Vláčil. A metade do século passado já configurava um cenário bastante convidativo à invenção, mas diferenças importantes persistem entre eles e a obras da turma mais nova, que despontou entre 1963-64. 

Esse aspecto fica bastante claro quando colocamos lado a lado filmes que tratam dos mesmos temas. Basta comparar o peso moral dos três que Kachyňa fez sobre o trauma de ser coadjuvante durante a Segunda Guerra, Viva a República (At’ žije republika, 1965), A Carroça (Kočár do Vídně, 1966) e A Noite da Noiva (Noc nevěsty, 1967) com a abordagem bem-humorada, de erotismo acentuado, em Trens Estreitamente Vigiados (Ostře sledované vlaky, 1966), de Jiří Menzel. O mesmo vale para o ânimo grotesco que Juraj Herz introduz à questão tabu do colaboracionismo em O Cremador (Spalovač mrtvol, 1968), temática que já havia sido abordada de forma lírica e humanista por Kádar e Klos em A Pequena Loja da Rua Principal (Obchod na korze, 1965).

Existem alguns segredos em cinematografias periféricas que muitas vezes apagam da história oficial do cinema nomes que deveriam ser olhados com mais atenção. František Vláčil é um deles. Dentro da Nouvelle Vague Tcheca, o cineasta tomou distância de temas e motivos visuais recorrentes – o trauma da Segunda Guerra ou os conflitos políticos-existenciais contemporâneos –, mergulhando no calabouço medieval do século dezesseis, em “lendas dos tempos antigos em que o diabo brincava com o destino humano”, como nos apresenta a introdução de A Armadilha do Diabo (Ďáblova past, 1961).

Mas o primeiro longa-metragem de Vláčil, após um período de documentários na década de 1950, é uma fantasia pacifista de intenção praticamente atemporal: com raras palavras e uma atmosfera visual-sonora impressionante, A Pomba Branca (Holubice, 1960) pode ser visto como o primeiro passo moderno do cinema tcheco – ali o cineasta inclusive já trabalha com nomes que se tornariam fundamentais nos anos seguintes, como os diretores de fotografia Jan Čuřík e Miroslav Ondříček (aqui operando a câmera). Na encruzilhada entre os anos 1950 e 1960, Jiří Weiss ainda estava próximo do melodrama clássico em Romeo e Julieta nas Trevas (Romeo, Julie a tma, 1959), Jasný tateava seu lirismo narrativo de expressão visual acentuada em Desejo (Touha, 1958); Kachyňa e Kádar & Klos ainda estavam distante do amadurecimento cinematográfico dos filmes de guerra nos anos 1960. Da geração dos anos 1950, “a primeira onda”, Vláčil é quem de fato anuncia a NV Tcheca.

Ao longo da década, numa guinada até certo ponto surpreende, Vláčil encara os confins medievais com um objetivo arriscado: oferecer ao espectador a impressão de que a câmera estava lá. Ao mesmo tempo, e sem que exista contradição nisso, fez das obras uma das grandes investigações estéticas do período – compara-se, sem nenhum exagero, ao período tardio de Serguei Eisenstein ou ainda aos primeiros filmes de Andrei Tarkovski. Entre sacrifícios e duelos, a sombra pesada do cristianismo (as imagens de Cristo são sempre violentas) modula os dramas: em A Armadilha do Diabo, o medo causado pela superstição a serviço da manutenção do poder, ou seja, da obstrução do conhecimento, leva à morte. Em O Vale das Abelhas (Údolí včel, 1967), dois cavaleiros que possuem visões opostas sobre o voto de fidelidade à  Ordem Teutônica também descobrem um desfecho trágico.

Mas foi no épico surrealista Marketa Lazarová (1967), adaptação do livro homônimo de Vladislav Vančura, com a história da jovem prometida a Deus que acaba nas mãos de um homem criado com os lobos, que Vláčil deu o passo mais ambicioso do cinema tcheco dos anos 1960: quase três horas de imagens que sublinham a carnificina (mas também a beleza) medieval com uma rara precisão e fazem jus aos anos dedicados à pintura do diretor. Ao mesmo tempo, os delírios e sonhos libertam a narrativa de quaisquer compromissos. Poucos filmes conseguem sustentar o peso de um épico clássico ao mesmo tempo em que administram com muita invenção as possibilidades modernas – câmera na mão, desenquadramentos, longos planos-sequência, montagem propondo a separação das imagens. Com a consciência de que estava traduzindo para o cinema o livro mais importante do modernismo de seu país, aquele que renovou a língua tcheca tendo como ponto de partida a tradição, não é exagero dizer que Vláčil encontrou um resultado equivalente no sentido cinematográfico.

 

A ruptura

Pois o que permanece valioso ainda hoje no vasto catálogo da NV Tcheca é justamente o esforço dos cineastas em tentar compreender de que forma viver num momento de novas perspectivas, ou seja, num estado de crise dentro de uma sociedade socialista que buscava um caminho alternativo à via única pautada pelos soviéticos – tudo isso aliado à urgência pela invenção (narrativa, estética ou comportamental, às vezes tudo ao mesmo tempo) que remonta, na lavoura cinematográfica, à vanguarda da década de 1930 do mesmo país.

Os filmes da NV Tcheca – tanto os convulsivos quanto os nebulosos – são mais do que resultados de uma crise, são filmes sobre estar em crise: dão forma à busca por uma real identidade num momento de transição em que tudo está em condição extremamente movediça. A equação entre procurar a verdade e entender o transitório nos leva à grande incógnita que o cinema tcheco dos anos 1960 sustenta até hoje, ainda que envolto em leveza atípica se pensarmos na gritaria da grã-ordem de rupturas do cinema moderno.

É claro, nem tudo era leve. Havia filmes modulados em tons graves. Algo que pode ser visto especialmente na interrogação que Evald Schorm escancara em Coragem de Todo Dia (Každý den odvahu, 1964) a respeito do homem tcheco, que, como bem viu Ginette Gervais, em Le film comme temoin de la société tchécoslovaque, ensaio panorâmico publicado pela Jeune Cinéma4 em 1970, passa longe de uma crise abstrata. O que interessa aos cineastas tchecos, num sentido geral, é a investigação do homem histórico: descer das nuvens (não as da metafísica, mas as do Realismo Socialista) e tentar entender um homem agindo nos espaços e quem vive ao mesmo tempo em que os espaços agem sobre ele. Espontaneamente brechtiano, o filme de Schorm (roteirizado por Antonín Máša, outra figura central da NV Tcheca) aproxima a derrota moral do operário exemplar de uma fábrica, “aquele que faz todo o trabalho e não recebe nada em troca” à irresponsabilidade flagrante de uma nova geração que não parece sentir o peso de estar no mundo. A crise é a de um sacrifício que continua (ou amplifica) o desgaste de corpo e espírito sem com isso produzir algo sagrado: a crise de não ser mais contemporâneo ao mundo em que se vive – ou quando Brecht encontra Kafka: a hostilidade vem de fora e rapidamente preenche os pensamentos do homem, angustiado com a impossibilidade de continuar a ser histórico, ou seja, de se transformar. De um modo geral, os filmes pesados da NV Tcheca são aqueles em que há algum tipo de estagnação e os mais lúdicos são justamente os que fazem manifesto do ato de se transformar.

Com a cortina furada e um mundo novo assombrando o olhar, não é de se estranhar que uma vontade realista tenha tomado conta dos filmes iniciais da NV Tcheca. Forman usa a técnica do documentário moderno para alcançar os “instantâneos afetivos” que André Téchiné (Cahiers du Cinema, 174, 1966) bem definiu a respeito de Pedro, O Negro (Černý Petr, 1963) e Os Amores de uma Loira (Lásky jedné plavovlásky, 1965). Jan Němec faz a câmera correr junto a seus personagens na introdução de Diamantes da Noite5 (Démanty noci, 1964), um filme que recorre todo momento a flashbacks e imagens mentais (numa festa cujos convidados de honra são Faulkner, Kafka e Resnais) mas que nunca perde a potência realista justamente por valorizar, a partir do plano-sequência visceral, o esforço extremo do ator. Em Alguma Coisa de Outro (O něčem jiném, 1963), Věra Chytilová abusa de um procedimento característico dos primeiros anos dos novos cinemas (Canadá, em especial): embaralhar o que a princípio é documental e ficcional segundo as leis da gramática cinematográfica. Por outro lado, a valorização do cenário urbano, dos tumultos mundanos que acontecem aos esbarros dos homens nas ruas de Praga, faz com que a expectativa do nascimento de uma criança em O Choro (Křik, 1963), de Jaromil Jireš, cristalize a problemática citada anteriormente, encontrar o embrião de um novo mundo e ao mesmo tempo entender a estação de crise da sociedade tcheca.

A tendência ao realismo mais bruto, naturalmente, vem da vontade de ruptura com o Realismo Socialista6 que, como destacou Gervais, em toda sua história no cinema (não apenas no país), não revelou sequer um filme realista ou socialista, mas assombrou a cinematografia tchecoslovaca do pós-guerra até a abertura nos anos 1960. Os jovens cineastas queriam fugir da imagem heróica, demasiadamente arquitetada, dos sujeitos grandiosos e seus dramas edificantes que serviam como toalha de mesa para meia dúzia de conceitos fincados sobre do papel do homem no processo revolucionário. Essa repulsa aos modelos resultou num realismo amplo, que nasce com a mise en scène emprestada do documentário (o olhar apaixonado aos pequenos gestos, aos movimentos dos corpos, a tudo que pulsa naquilo que está imediatamente visível) e passa, num sentido dramático, pela preferência às miudezas cotidianas. Da mesma forma – e talvez essa seja uma particularidade do jovem cinema tcheco – tal ruptura também levou muitos filmes a fazerem o elogio do amadorismo, do que é desajeitado, especialmente naqueles roteirizados e filmados pelo trio Miloš Forman, Jaroslav Papoušek e Ivan Passer. Podemos pensar no jovem que não sabe dançar e busca, de forma trepidante, conquistar a menina no baile em Pedro, O Negro; mas também no encontro prosaico entre velhos amigos em  Iluminação Íntima (Intimní osvětlení, 1965), de Passer, onde cenas como o almoço tumultuado pelas crianças e os ensaios improvisados entre os músicos revelam um bocado do senso de humor particular tcheco que, eles dizem até hoje, ninguém consegue entender. O inverso aparece na antológica tiração de sarro de Forman e seus comparsas (o roteiro tem a co-autoria de Papoušek e Passer) em relação aos eventos oficiais, cuidadosamente organizados, mas repletos de problemas burocráticos e outros entraves de ordem prática em O Baile dos Bombeiros (Hoří, má panenko, 1967), que não por acaso foi imediatamente censurado.

A radicalização

Na segunda metade da década, com o inesperado vale-tudo visual de As Pequenas Margaridas, Chytilová toma uma posição de destaque dentro da NV Tcheca. Embora as sombras do absurdo e do surrealismo já fossem marcantes nos primeiros filmes de Pavel Juráček e Jan Němec, o maior estudioso do cinema tcheco, Peter Hames, cita 1966 como o ano em que, de fato, o cinema tchecoslovaco inclina-se à vanguarda, retomando laços com grupos que movimentaram a arte e a política do país entre as décadas de 1920 e 1930, antes da ocupação nazista e da consequente submissão à União Soviética colocarem panos de chumbo sobre quaisquer tentativas de aproximação entre vanguarda e revolução. É o mesmo ano, não podemos esquecer, de A Festa e os Convidados (O slavnosti a hostech, 1966), segundo longa-metragem de Němec. O filme comenta através do absurdo a facilidade com que o homem se submete ao autoritarismo. Numa demonstração clara de que os ventos não sopravam tão livres no país, o então presidente Antonín Novotný deu o célebre carimbo: “banido para sempre”, cogitando ainda a prisão do cineasta.

De qualquer forma, a inclinação vanguardista não surge como oposição à verve realista dos primeiros anos, mas como uma continuidade natural. Fica muito claro, no caso de Chytilová, quando notamos que As Pequenas Margaridas começa exatamente onde Alguma Coisa de Outro termina. No primeiro, há duas narrativas que nascem separadas e terminam assustadoramente próximas: as repetições dos exercícios e as repetições da vida conjugal fazem das personagens da ginasta e da dona de casa um paralelo feminino ao protagonista em crise de Coragem de Todo Dia. É emblemática a cena em que a ginasta, visivelmente abatida, é entrevistada sobre o fato de ter aberto mão de tudo para se tornar uma campeã esportiva. “Não tenho tempo para nada – afirma – estou um pouco cansada, ainda estou na ativa e às vezes acho que não posso prosseguir”. “Por que não para?” – questiona o repórter. A resposta é a cena mais política do cinema tcheco dos anos 1960: ela olha para o lado, dá um sorriso cansado e some do plano. Como quem precisa encontrar um contragolpe imediato dentro da própria narrativa, a cena seguinte já anuncia As Pequenas Margaridas ao mostrar a dona de casa aos beijos com o amante num restaurante. Em 1964, o prazer só era possível às escondidas. No filme de 1966, se o mundo não satisfaz, num coice de olhos é possível inventar outro.

No mesmo ano, Němec realiza Mártires do Amor (Mučedníci lásky, 1966), com três histórias livres sobre tipos solitários que imaginam aventuras delirantes, mais uma vez num comentário claro sobre a necessidade de inventar outro mundo para se satisfazer. Trata-se de uma homenagem aberta ao Poetismo, “o epicurismo moderno” idealizado por Karel Teige, figura central da vanguarda tcheca, cujo manifesto principal era o de buscar um “modo de vida e de arte brincalhão, não-heróico, não-filosófico, malicioso e fantástico”. A influência do surrealista do Devětsil, grupo surrealista fundado por Teige e Vladislav Vančura nos anos 1920 e que contou com o poeta e escritor Vítězslav Nezval7, também aparece em adaptações importantes – do humor provinciano de Um Verão Caprichoso (Rozmarné léto, 1967), dirigido por Jiři Menzel, e no retorno ao período medieval com intenções modernas no épico experimental Marketa Lazarová (Marketa Lazarová, 1967), dirigido por František Vláčil, ambos romances originais de Vančura, passando pelo simbolismo erótico e de sobretons psicanalíticos de Valerie & Sua Semana de Deslumbramentos, dirigido por Jireš, baseado em cultuado romance de Nezval.

A situação é paradoxal. O cinema tcheco investia pesado no experimentalismo e atingia o ápice de popularidade, com prêmios em diversos festivais, dois Oscar de Melhor Filme Estrangeiro – A Pequena Loja da Rua Principal (Obchod na korze, 1965), de Elmar Klos e Jan Kádár, e Trens Estreitamente Vigiados (Ostře sledované vlaky, 1966), de Menzel, e promessas de contratos de distribuição mundial. Mas foi a época em que os jovens cineastas também receberam as críticas mais agudas. O próprio grupo surrealista contemporâneo que retornava às atividades paralelamente ao surgimento da NV Tcheca, depois de décadas respirando como uma movimentação underground, rejeitava8 boa parte das invenções cinematográficas que são tidas hoje como a retomada do espírito vanguardista dos anos 1920. Líder dos surrealistas do pós-guerra, Vratislav Effenberger via o novo gosto pela vanguarda entre artistas e críticos como um indicativo de fácil ecletismo, apenas o outro lado da hiperuniformidade do Stalinismo. As Pequenas Margaridas, por exemplo, foi considerado um mero cinismo decorativo. Em contrapartida, o grupo via nos filmes iniciais realistas, especialmente os primeiros de Forman, uma compreensão ativa da realidade, contemplada por um tipo de humor agressivo que denunciava os absurdos da vida cotidiana na Tchecoslováquia.

Não foi apenas dentro de casa que o cinema tcheco recebeu pedradas. Jean-Luc Godard fez sua crítica célebre em Pravda (Pravda, 1970), filme do Grupo Dziga Vertov rodado clandestinamente na capital tcheca, após 1968. O filme desdenhava do caráter revolucionário da obra de Chytilová ao citá-la como equivalente aos filmes de Zanuck para a Paramount. Existia um descompasso claro entre as rupturas da NV Tcheca a partir de 1966 e os ideais de cinema revolucionário9 que entraram em pauta especialmente a partir de 1968. A mudança de ânimo dentro de parte da crítica cinematográfica fica bem evidente quando notamos que Chytilová é capa da edição de fevereiro de 1968 da Cahiers du Cinéma, após entrevista e destaque no ano anterior, e depois desaparece das pautas da revista, assim como quase todos os outros nomes. A própria Positif também diminuiu a empolgação com os filmes. Sobrou para a Jeune Cinéma, fiel escudeira do cinema tchecoslovaco, acompanhar os anos traumáticos do final da década de 1960. No texto de Gervais já citado anteriormente, a crítica lança um último olhar de fôlego em relação àquele cinema, lamentando o seu desfecho abrupto: “o cinema tcheco dos últimos 12 anos refletiu a sociedade de onde partiu mais do que qualquer outro país socialista; ele trouxe os problemas à tela, suscitou a reflexão; pela qualidade da forma, a riqueza e o rigor do conteúdo, mais do que qualquer outro contribuiu para a educação do povo. Por que não pode continuar seu trabalho?”

A defesa era um tanto quanto solitária, entretanto. A desconfiança pautava o olhar da esquerda ocidental, aparecendo até mesmo no questionamento contemporâneo de brasileiros. Com uma das leituras mais interessantes do momento tcheco, colocando em dúvida até mesmo os efeitos positivos da segurança criada pelo estado, Glauber Rocha10 temia o perigo da contaminação das regras do jogo burguês em meio aos problemas existenciais desencadeados pelos problemas econômicos (“garantido pelo Estado, o homem não se sente seguro diante de si mesmo e a vida passa a ser um fluir monótono para a morte”). Em outra direção crítica, o autor da primeira publicação a respeito do jovem cinema tchecoslovaco no Brasil, Sylvio Back, observava com certa desconfiança o futuro do cinema tcheco sob o ponto de vista da relevância revolucionária11.

Muitas incertezas acodem a qualquer espectador atento e para elas nem sempre as soluções se mostram convincentes. Daí a preocupação sobre o futuro desse cinema de passado arraigadamente local, onde o presente balança entre o retrato autêntico de uma sociedade em processo e uma tendência à capitulação burguesa e tácita negação dos valores socialistas.

Não deixa de ser a mesma interrogação que existia em relação às consequências do “socialismo de face humana” defendido por Alexander Dubček. No que a Tchecoslováquia se transformará? – desesperavam-se os fervorosos. Uma república socialista verdadeiramente democrática? Uma Disneylândia fincada no Leste Europeu? Como sabemos hoje, a resposta nunca veio: os tanques soviéticos tomaram o país na marra, em agosto de 1968, congelando todas as principais rupturas da década e devolvendo a neblina burocrática que permaneceu, com brechas impossíveis de serem vistas a olho nu12, até 1989.

Nesse contexto, a NV Tcheca ainda consegue respirar alguns furtos com os lançamentos entre 1968 e 70, um período ainda mais notório de radicalização: a experimentação visual e narrativa atinge o clímax em filmes como Cremador (Spalovač mrtvol, 1968), de Juraj Herz, Fruto do Paraíso, de Chytilová, e os carrollianos Caso para um Carrasco Novato (Případ pro začínajícího kata, 1969), de Juráček, e Valerie & Sua Semana de Deslumbramentos, de Jireš. Por outro lado, duas obras tiravam do túmulo sem meias palavras (ou imagens) os desmandos internos do Partido: A Piada, de Jireš (baseado em romance e histórica pessoal de Milan Kundera) e Andorinhas Por um Fio (Skřivánci na niti, 1969), de Menzel, adaptado de Hrabal. A ironia trágica é que apesar de terem sido idealizados como uma denúncia aos desmandos Stalinistas do pós-guerra, a dupla acabou retratando com fidelidade o terrorismo político do final dos anos 1960. Em 1970, o fim se anuncia quando o comando da indústria cinematográfica13 é trocado de supetão. O saldo imediato: muitas filmagens interrompidas, novos projetos abortados, cineastas proibidos de filmar e dezenas de obras (inclusive as premiadas) na vala da censura. O saldo histórico: uma cinematografia que nunca mais conseguiu se tornar relevante de novo.

Entre mortos (a carreira de Juráček acabou, a promissora Drahomíra Vihanová ficou quase trinta anos sem dirigir ficções) e feridos (Menzel e Chytilová voltaram a filmar, sem a mesma liberdade, em meados dos anos 1970; Schorm se refugiou na televisão); entre exilados de sucesso (o duas vezes oscarizado Forman e Passer, ainda que sem o mesmo êxito comercial) e de fracasso (Němec caiu no ostracismo e acabou filmando até casamentos nos Estados Unidos), a maior das cicatrizes é que a interrupção truculenta não deixou que Nouvelle Vague Tcheca pudesse responder com a devida profundidade as questões que ela mesma impôs no ventre de seu cinema.

1 Para além da Tchecoslováquia, ainda que com menor intensidade, rupturas jovens surgiram em países como a Polônia, onde duas gerações importantes se formaram, a dos anos 1950, capitaneada por nomes como Andrzej Wajda, Andrzej Munk e Jerzy Kawalerowicz, e a dos anos 1960, tendo Roman Polanski e Jerzy Skolimowski na linha de frente; e a Hungria, que paradoxalmente afrouxou algumas correntes após a invasão soviética, em 1956, e revelou nomes interessantes na década de 1960 como István Szabó e Miklós Jancsó. Embora a Iugoslávia de Josif Tito não fizesse parte da cortina desenhada pelo Pacto de Varsóvia, a existência de um jovem cinema no país, a black wave de Dušan Makavejev e cia, teve uma história similar a das outras repúblicas socialistas do leste europeu.

2 Um dos pontos mais importantes da efervescência cultural na Tchecoslováquia nos anos 1960 é o constante diálogo entre os campos artísticos. É impossível desassociar a explosão do jovem cinema do surgimento de uma nova geração literária (Milan Kundera, Josef Škvorecký, Bohumil Hrabal e o dramaturgo Václav Havel) entre o final dos anos 1950 e 1960, além da ressurreição oficial do grupo surrealista que, como veremos adiante, teve uma relação delicada com a NV Tcheca.

3 No discurso, em 25 de fevereiro de 1956, o secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Khrushchev, criticou abertamente a truculência política e o culto à personalidade do regime de Stalin, abrindo espaço para anos um pouco menos rigorosos dentro da configuração socialista do Pacto de Varsóvia. De qualquer forma, naquele mesmo ano a Hungria sofreu a invasão soviética, em resposta à crescente abertura política interna.

4 Na crítica francesa, foi a pequena revista criada por Jean Delmas dentro do espírito cineclubista que começou a olhar com mais atenção para o cinema tchecoslovaco nos anos 1960. Já em seu terceiro número, lançado em dezembro de 1964, a revista publicou um especial de fôlego que contemplava não apenas a NV Tcheca, mas também cineastas populares do país, filmes de ficção-científica e de animação. No texto de apresentação, Delmas provocava: “a França, mãe das artes, ficará para trás” em relação a esse cinema? De fato, a crítica francesa demorou um tempo para abraçar (ou agredir) o cinema tcheco. Em 1966, Forman se tornaria uma das referências do novo cinema, ganhando capa da Cahiers du Cinéma e textos empolgados de Michel Ciment na Positif. No mesmo ano, na edição 16, em texto de Ginette Gervais e Raymond Chirat, a Jeune Cinéma provocava novamente: “o jovem cinema tcheco não é apenas Forman…” e apresentava cineastas importantes como Evald Schorm, Pavel Juráček e Zbyněk Brynych. A Positif tirou o atraso, especialmente através de Ciment, em artigos mais panorâmicos como Les trois coups de Prague (80/81) e Les tchèques arrivent (92). A Cahiers du Cinéma, apesar de eleger Chytilová um dos ícones do novo cinema, especialmente a partir de Jacques Rivette e do novato Serge Daney, continuou tratando a NV Tcheca como um pequeno detalhe dos anos 1960, ainda mais se compararmos à atenção dada aos novos cinemas de países como Suécia, Itália, Estados Unidos, Japão, Brasil e Canadá, que ganharam edições especiais ou análises mais cuidadosas naqueles anos. Vale notar o desempenho de um dos filmes mais importantes do início da NV Tcheca, Diamantes da Noite, de Jan Němec, no quadro de cotações da edição 177 da Cahiers: enquanto boa parte da crítica externa foi generosa – Robert Benayoun, da Positif, deu quatro estrelas, o número máximo –, todos os escribas da Cahiers, Jacques Bontemps, Jean-Louis Comolli e Jean-André Fieschi, deram bolinha preta. Num sentido geral, os críticos mais importantes que pautavam a cobertura dos novos cinemas na revista (além dos presentes no quadro, é notável também a resistência de Luc Moullet, que inclusive considerou o filme de Němec reacionário, digno de intervenção do partido, na edição 166/67) não mergulharam com tanta vontade no fenômeno do jovem cinema tcheco.

5 Diamantes da Noite torna-se emblemático ao reunir dois dos principais diretores de fotografia do cinema tcheco: Jaroslav Kučera é o responsável pelas cenas mais oníricas, enquanto Miroslav Ondříček filmou toda a parte visceral na floresta. Não deixa de ser um belo retrato das duas vertentes da NV Tcheca: a fantasia a partir da imagem deslumbrante de Kučera e a busca pela potência realista a partir da imagem suja de Ondříček. Considerado pelos próprios cineastas o co-autor dos filmes nos quais trabalhou, como O Choro, Um Dia, Um Gato (Až přijde kocour, 1963, Pérolas ao Fundo do Mar (Perličky na dně, 1965), As Pequenas Margaridas (Sedmikrásky, 1966), e Fruto do Paraíso (Ovoce stromů rajských jíme, 1969), Kučera é uma das figuras seminais da NV Tcheca. O mesmo vale para Ondříček, autor da fotografia dos filmes de Forman e Ivan Passer. O terceiro diretor de fotografia de destaque naquele cenário foi Jan Čuřík, responsável pelas imagens singulares de Coragem de Todo Dia, Alguma Coisa de Outro, A Piada (Žert, 1968), Valerie & Sua Semana de Deslumbramentos (Valerie a týden divů, 1970), entre vários outros.

6 O conceito por trás do Realismo Socialista no cinema tchecoslovaco fica muito evidente quando encontramos um encarte produzido pelo setor cultural do próprio governo comentando os louros cinematográficos dos anos 1950: “ao lado de filmes com temas de caráter social, tem sido criado todo tipo de filmes históricos e, ao lado de filmes biográficos de gloriosas figuras da história política e cultural do povo, têm sido filmadas outras sobre as obras dos clássicos da literatura nacional. (…) Uma grande atenção se dedica à produção de filmes para a juventude, antes depreciados, que constituem parte importante de sua educação moral”.

7 Teige e Vančura defendiam a criação de uma indústria cinematográfica estatizada ainda nos anos 1930, acreditando que a vanguarda afinada aos ideais socialistas poderia atuar com mais liberdade. Dos dois, Vančura foi aquele que realmente se aproximou do cinema, realizando alguns longas-metragens, entre eles o importante Marijka, a Infiel (Marijka nevěrnice, 1934), visto como um precursor local do neorrealismo italiano. Nezval escreveria o roteiro de De Sábado a Domingo (Ze soboty na neděli, 1931), de Gustav Machatý, que inclusive é citado em algumas cenas de As Pequenas Margaridas. A influência do Devětsil ou do Poetismo no cinema tchecoslovaco dos anos 1930 ainda aparece nas obras dos iniciantes Otakar Vávra, que décadas mais tarde seria um dos principais professores da geração da NV Tcheca na FAMU; Martin Frič, que buscou a dupla de atores dadaístas Jiri Voskovec e Jan Werich para suas comédias no final dos anos 1930 – Welrich foi resgatado por Vojtěch Jasný para o papel principal de Um Dia, Um Gato, Schorm e seu roteirista/escritor Josef Škvorecký tentaram reaproximar a dupla no final dos anos 1960, mas o projeto foi vetado; e Alexandr Hackenschmied, cineasta e fotógrafo que imigraria para os Estados Unidos em 1938, onde iniciou uma parceria artística e amorosa com Maya Deren, já com o nome de Alexander Hammid.

8 A melhor publicação a respeito das tormentas entre os surrealistas e a NV Tcheca é Avant-Garde to New Wave: Czechoslovak Cinema, Surrealism and the Sixties, escrita por Jonathan L. Owen.

9 Foram vários os ideais de cinema revolucionário ao redor de 1968, é evidente, mas uma boa leitura das rupturas naquele momento está presente no texto de Stéphane Bouquet e Emmanuel Burdeau publicado no livro Cinéma 68. “As grandes questões do cinema político: como filmar o conflito, aquele que está no exterior dos filmes (oposição do capital e do trabalho, dos homens e das mulheres), aquele que está no interior (a imagem contra a imagem, o som contra o som, as imagens e os sons contra os sons); como enfrentar a grande problemática marxista, já presente na obra dos cineastas soviéticos, a da dialética”. O fato é que o contexto das rupturas de países que viviam processos revolucionários, como a França em 1968, quando a vitória da esquerda era algo que se via (ou sonhava) no horizonte, é muito diferente ao de países que já estavam vicenciando uma realidade socialista. Isso fica claro quando aproximamos filmes políticos italianos e franceses aos do leste europeu; ou, numa realidade mais próxima a nossa, os filmes do Cinema Novo, como Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, às obras cubanas realizadas após a revolução, como Memórias do Subdesenvolvimento (Memorias del Subdesarrollo, 1968), de Tomás Gutiérrez Alea.

10 O testemunho de Glauber Rocha – trecho de O novo cinema do mundo – pode ser lido no apêndice de O século do cinema, publicado pela Cosac Naify. Curiosamente, o primeiro prêmio internacional a Glauber foi na Tchecoslováquia, quando Barravento (1962) ganhou o Jovem Revelação no Festival de Karlovy Vary daquele ano. Em 1969, o brasileiro novamente encontra o país, quando O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969) é premiado com a melhor direção no Festival de Cannes ao lado de Todos os Meus Companheiros (Všichni dobří rodáci, 1968), de Vojtěch Jasný.

11 Um cinema polêmico foi lançado em 1967, na ocasião de um ciclo de cinema tchecoslovaco em Curitiba.

12 O microscópio se faz necessário e um dos capítulos da história do cinema que merece um olhar mais atento é a produção cinematográfica tchecoslovaca durante o período conhecido como a normalização, entre 1969 e 1989.

13 Ao longo dos anos 1960, houve um processo de descentralização da produção cinematográfica que possibilitou a realização de um maior número de filmes. Coube ao produtor Erich Svabík e especialmente ao roteirista Jan Procháska, parceiro fiel de Karel Kachyňa (cineasta importantíssimo da geração dos anos 1950), chefiarem as aventuras da produção mais inventiva do país. Quase todos os filmes da NV Tcheca têm o selo Svabík/Procháska na produção. A partir de 1970, a dupla foi proibida de se aproximar de quaisquer realizações cinematográficas. Com a saúde debilitada, Procháska morreu em 1971 como um dos intelectuais mais vigiados da Tchecoslováquia, acusado pela KGB de organizar um grupo dedicado à destruição do socialismo.

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Versão revisada de texto publicado originalmente no catálogo da mostra Nouvelle Vague Tcheca, com curadoria de Gabriela Linck e produção da Vai e Vem.

azul é a cor mais quente

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A vida de Adèle – percebe-se logo nas primeiras cenas – é algo que acontece. Nada de biografias pálidas ou retratos justos: aqui a vida traduz-se na pele, nos lábios, nos dentes, nos excessos que o corpo produz instantaneamente quando está entregue às próprias tempestades. A paixão pelo movimento das coisas, a grande sedução histórica do cinema, é o que distancia a obra de Abdellatif Kechiche da graphic novel que o inspirou. Tanto a matriz dos quadrinhos quanto o filme encaram o nascimento do amor (e, consequentemente, o da sexualidade) em uma jovem que descobre ali as fraturas e os encantamentos do mundo, ou seja, daquilo que lhe é incontrolável. Mas há uma diferença primordial. Na obra em papel o fim é sempre o amor, quase um objeto autônomo que precisa ser compreendido a cada página. Na obra de Kechiche, não existem fins: todo o interesse está no fato de que é preciso lidar – Adèle e o cineasta – com algum tipo de novidade a cada cena.

De certo é aí, quando um filme consegue mostrar algo que num segundo não é nada e no outro já é tudo, que encontramos a grande potência cinematográfica. Eternizar o que escapa é a principal travessura que faz com que a arte do cinema ainda permaneça vibrante, por mais que as carpideiras insistam em citá-lo como um evento do passado. E a vibração contemporânea de Azul é a Cor Mais Quente não nos deixa enganar: estamos diante de uma obra de arte do nosso tempo.

Um turbilhão eletriza o corpo de Adèle – da paixão absoluta por Emma, a menina do cabelo azul, ao primeiro sexo; da vida conjugal às primeiras experiências profissionais. Fiel à intensidade de sua personagem, Kechiche arquiteta uma sucessão de cenas que compreendem uma espécie de tudo ou nada: descobrir, descobrir-se, descobrir-se de algo, eis o tripé que orienta o atropelo emocional de Azul é a Cor Mais Quente. A sobreposição de perdas (podemos pensar na perda da inocência, num grande amor que escapa, mas também num ônibus que corre distante, nas bochechas que desaparecem) que o filme aproxima ao território do inevitável, ou seja, ao trágico, se choca com os evidentes ganhos. Porque a cada conflito que Kechiche faz questão de não encenar, a cada elipse desconcertante que engole um ano inteiro, Adèle reaparece mais firme e até mesmo seu desespero se torna mais confiante, como vemos na catártica cena do reencontro com Emma no café.

O essencial

Num cenário dominado por ilustradores de roteiros, admira-se a coragem narrativa de Kechiche. O drama a conta-gotas é a solução mais cômoda quando a trajetória de um personagem atravessa um período considerável. Mas o cineasta não tem medo do tempo: em Azul é a Cor Mais Quente tudo tem o impacto de um evento único. Os longos blocos de ação fazem com que as principais cenas esgotem as intensidades em si. Nada resta, nada sobra, Kechiche não fica ruminando vestígios dramáticos. Os atos grandiosos deixam claro o interesse aqui paira justamente sobre as inaugurações.

Não surpreende, portanto, que ao longo das três horas existam tão poucas cenas. As escolhas de Kechiche transparecem a defesa do essencial[1]. Por que inventar mil e uma distrações se tudo o que interessa é encontrar um universo inteiro num rosto? É algo que justifica, da mesma forma, a opção pela decupagem como princípio orientador da mise en scène. Se os rostos aparecem isolados, mesmo quando estão muito próximos, não deixa de ser uma interdição a quaisquer tipos de excessos cênicos que possam amenizar os golpes e contragolpes emocionais dos encontros entre Adèle e Emma. Nos grandes momentos do filme, pouco importa como é o bar, o quarto ou a sala: o mundo tem que respirar naqueles olhares, naqueles engasgos, nos lábios mordidos.

Identificado em muitos carnavais críticos como um realista, Kechiche demonstra um controle rigoroso de tudo o que acontece em cena. As firmezas são muitas aqui – mesmo a adolescente Adèle toma consciência rapidamente de suas verdades, especialmente as que se relacionam com a sua sexualidade. Nada escapa do olhar de Kechiche porque, obviamente, o filme inteiro é o seu olhar. A decupagem não apenas impõe um tempo perfeito ao jogo das ansiedades, modulando as batidas do coração da narrativa, mas reafirma um dos princípios básicos daquilo que Griffith cristalizou há quase cem anos: o de fazer ver. Não somos reféns de Adèle, mas do olhar de Kechiche a Adèle.

A metáfora do caçador serviu ao cineasta realista moderno, de Rossellini ao novo documentário, porque sua câmera estava sempre à espreita, acompanhando o movimento do mundo a espera dos instantes definitivos, dos acidentes milagrosos. Se a separação entre os olhares (dos personagens, da câmera e do espectador) praticamente não existe em Azul é a Cor Mais Quente, se não existe a tensão do encontro que caracterizou o cinema moderno rosselliniano, apesar dos instantes pulsarem acima dos quarenta graus, é porque a presa, ou seja, a imagem, está sob o domínio do criador desde o início. Não é um cinema de caça, mas de posse.

Esse tipo de controle muitas vezes é visto com desdém, estão sempre organizando passeatas contra decupagens mais rigorosas. A cartilha contemporânea pede que o espectador estabeleça suas próprias regras com os espaços, com o tempo, incentivando (mesmo que artificialmente) uma suposta liberdade do olhar. Kechiche organiza seu território visual com tamanha destreza que até permite a liberdade de Adèle. Mas nunca a nossa. O realismo do franco-tunisiano é o de quem tem tudo nas mãos – mais dos deuses que de um reles mortal com o dom de flagrar um milagre.

Para além do rigor do olhar, a impressão é a de que Kechiche também sente a necessidade de criar uma zona de conforto para sua jovem desbravadora, para que a festa de seu corpo possa transcorrer sem maiores tormentas. Pois a cada passo que ela dá, o mundo se torna maior. Seus colegas, sua família, sua namorada, todos desaparecem ao longo do filme. Mas sobra a câmera, eternamente grudada, oferecendo uma superproteção constante a Adèle. O derradeiro plano, aquele que finalmente permite alguma distância à mulher, não deixa de ser a última separação do filme. Adèle não olha para trás, a câmera permanece na esquina. Kechiche finaliza sua obra-prima como quem diz: agora é contigo.

O que é, é?

Com certo didatismo, Azul é a Cor Mais Quente insere-se entre os herdeiros da questão-impasse que orientou o cinema moderno e que ainda pauta o contemporâneo: agora que não sabemos mais quem é o homem, como iremos filmá-lo?

Essa também foi a crise do real, porque a questão naturalmente se amplia: agora que não sabemos o que é a verdade, como iremos filmar qualquer coisa? A resposta de Adèle às inspirações existencialistas de Emma não deixa de ecoar um tipo de certeza misteriosa que o filme de Kechiche assume sem medo de soar indolente: a essência está sempre mordendo o rabo da existência, e vice-versa. Talvez por isso que Azul é a Cor Mais Quente busque um diálogo consciente com uma das respostas mais influentes à questão-impasse do moderno, encontrada pelo então crítico Jacques Rivette, no início dos anos 1950, a respeito da obra de Howard Hawks.

 A beleza do cinema de Hawks, dizia ele, advém desse tipo de afirmação, persistente e serena, sem remorsos e sobressaltos. É uma beleza que manifesta a existência pelo respirar e o movimento pelo andar.

Existia em Rivette uma enorme vontade de descobrir um cinema moderno, esse enigma visto muitas vezes como algo distante das evidências. Na verdade, o que se buscava ali era uma nova evidência, ou ao menos uma nova forma de se aproximar dela, distante das imunidades trágicas. A procura insaciável, em termos brutos, era a do homem que acontece ao longo do filme. Mesmo abraçando com gosto esse tipo de certeza que não esgota o mistério do homem, o cinema nunca escondeu um incômodo: foge-se do homem trágico como o diabo foge da cruz, mas o inelutável está sempre rondando a vida – essa verdade em movimento que o cinema pós-1960 supostamente é capaz de acompanhar. Décadas mais tarde, o próprio Rivette reviu suas ideias e estabeleceu um diálogo, inconsciente ou não, com as representações contemporâneas, inclusive a de Kechiche, que identificam uma saída para além da utopia da ação pura.

Quarenta e cinco anos depois, tenho vontade de voltar às frases do princípio e do fim do meu velho artigo sobre Hawks: “o que é, é”, mas o segundo “é”, se tudo correr bem, não tem o mesmo sentido do primeiro!”

Ao assumir o movimento das evidências, Rivette não deixa de indicar certo tipo de fraqueza que sustenta até hoje a beleza do cinema: a imagem não consegue dar conta de tudo. Há sempre alguma coisa inacessível. Nós nos preocupamos sim com os pensamentos de John Wayne enquanto ele anda em direção a Montgomery Clift ao final de Rio Vermelho, assim como nos intrigamos com o que explode dentro de Adèle no momento em que ela espera o primeiro beijo de Emma. Talvez seja esse o magnetismo absoluto de Azul é a Cor Mais Quente: ao criar um elogio do visível, Kechiche faz com que o invisível transborde em todas as ações e nos deixa completamente impotentes.

[1] As escolhas também são extremamente políticas, diga-se de passagem: não recordo uma elipse tão poderosa, num contexto em que as alas conservadoras cada vez saem mais da toca, seja na França ou aqui, como aquela que liga o sexo proibido na casa dos pais da Adèle colegial à sala de aula em que a Adèle professora ensina a linguagem às crianças do maternal.

Versão revisada do texto publicado na edição 23 da revista Teorema. 

killer joe: todos os anjos exterminados

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Não vem de hoje o gosto de William Friedkin pelas searas malditas – a de Killer Joe – Matador de Aluguel deságua em uma família texana pobre, decidida a matar a mãe para conseguir o dinheiro da herança. Para isso, pai e filho contratam o personagem que dá título ao filme, um policial que vende seus crimes por uma soma considerável. O prazer em filmar todos os tipos de sujeira (da poética, o submundo queer, à literal, os vômitos de uma adolescente possuída pelo diabo) aliado à trajetória turbulenta, emprestou a Friedkin a alcunha de transgressor entre os nomes que deram fôlego a Hollywood nos anos 1970. Reforçando a boa fase do veterano, seu último filme também cai bem para questionarmos o que o cineasta deseja colocar em debate quando entra no inferno.

Antes de qualquer coisa, o teatro.

Também não vem de hoje o gosto pelo teatro. As adaptações já aparecem em seus primeiros filmes, ainda nos anos 1960. Desde sempre, no entanto, ficou claro que o cineasta não estava tão preocupado em teorizar as intersecções entre as duas artes, como fazia contemporaneamente um Jacques Rivette. Revisitando – com um temperamento moderno – as regras clássicas da mise en scène, Friedkin fez de seu cinema um constante exercício de controle total da ação, ignorando conscientemente quaisquer apelos sessentistas por liberdade, seja daquilo que filma ou do que é filmado. Suas visitas ao teatro, na verdade, se justificam numa especificidade pontual: o fato de que a ação deve acontecer num espaço limitado. Encontramos em quase todos os filmes baseados em textos teatrais, e até mesmo em alguns que não são adaptados (O Exorcista é o exemplo mais célebre), uma história iniciada com uma situação de bem-estar que vai se deteriorando na medida em que as diferenças entre os personagens, potencializadas pelo espaço reduzido, começam a aparecer.

Podemos ver a fricção entre os homens já em Os Rapazes da Banda, quarto filme de Friedkin, adaptação do marco teatral queer de Mart Crowley: o que sai de atrito, o que é capaz de explodir, quando personalidades distintas estão muito próximas? O modo como o cineasta vai filmar esse jogo de forças, no entanto, está muito mais próximo do “fazer ver” que a decupagem clássica criou ao juntar a unidade cênica do teatro e a organização narrativa da literatura, do que na valorização da catarse física dos atores, tão em voga na virada dos anos 1970. Nada muito diferente, atravessando algumas décadas, do que encontramos no clímax violento de Killer Joe.

Seu último filme dá continuidade à parceria com o dramaturgo Tracy Letts – iniciada em 2006 com Possuídos, narrativa que também gira em torno de figuras marginalizadas que vivem no sul dos Estados Unidos. A insistência com os estados sulistas pode ser explicada numa frase de um dos personagens da obra mais recente: “nós somos um bando de caipiras com muito espaço em volta”. De fato, nos dois filmes temos figuras que parecem viver numa espécie de buraco negro, à mercê de suas próprias armadilhas. Se em Possuídos esse cenário potencializa a paranóia, em Killer Joe ele abre caminho para a autodestruição. Uma das belezas da arte de Friedkin é essa: filmar esse “muito espaço em volta” em ambientes diminutos, fazendo do espaço muito mais um estado de espírito que uma referência territorial.

Pensando no modo como Friedkin absorve o teatro em sua filmografia, o surpreendente em Killer Joe é que não vemos nenhuma evolução dos personagens. Ao contrário de outros filmes teatrais (Os Rapazes da Banda, O Exorcista e Possuídos), os personagens nunca saem do lugar num sentido emocional – não se desmancham, nem
transgridem suas próprias leis. O atrito que pontua a violência do desfecho é exatamente o mesmo da primeira cena. Nem a introdução de um elemento estranho naquela família, o policial contratado para matar a mãe, altera o estado das coisas. Não estamos diante de um Shane, de um Teorema. Todos os anjos já estão exterminados. Trata-se do primeiro desafio que Friedkin toma para si, o de manter intensa uma obra que entrega tudo na primeira cena.

O elogio da punição

Em Killer Joe, tudo parece tão escancarado que talvez nem se perceba que não vemos quase nada. Ao menos nada do que realmente interessa em termos de trama: não vemos o assassinato da mãe, não vemos as peripécias amorosas da madrasta e não vemos o desenrolar do relacionamento sexual e afetivo entre Dottie, a virgem pura da família, e o policial. As elipses certamente foram pensadas para intensificar a catarse da última ceia, porque ali, teoricamente, as relações entre os personagens se tornam mais claras ao mesmo tempo em que são implodidas. Mas elas também deixam evidente o que o cineasta quis com mais uma adaptação de Tracy Letts. Não estamos diante de um thriller, de um filme de assassinato; muito menos de uma espécie de Lolita no deserto. Killer Joe não é um filme sobre amor, traição e muito menos sobre o despertar sexual, é um filme sobre punição.

Do início ao fim, encontramos uma série de situações em que alguém é punido. A mãe é punida por vários motivos, mas especialmente porque não foi uma boa mãe. O garoto é punido porque negocia com bandidos. O pai é punido por ser um completo idiota – e o próprio Killer Joe possivelmente será punido por ter encostado as botas naquela lama. O massacre no desfecho é apenas a cereja do bolo de um filme que insiste o tempo inteiro que alguém deve ser violentado por algo que fez de errado. Dessa forma, promovendo uma verdadeira celebração ao castigo, a obra nos responde com clareza o que o cineasta deseja ao entrar num universo moralmente condenável: condenar.

Chama atenção, entretanto, que de todos os atos de punição presentes em Killer Joe, o espetáculo recaia justamente sobre o da madrasta, quando o policial arma uma grande cena para agredi-la e humilhá-la sexualmente. Ela é violentada, a rigor, porque foi mais gananciosa do que todos ali, porque quis dar um golpe, mas os excessos sexuais do ato deixam transparecer outra motivação: ela está sendo punida por ser uma vadia. Lembremos da primeira cena do filme, quando ela abre a porta de casa sem calcinha e é recriminada moralmente pelo enteado, sujeito que não parece ter em conta muitas arestas morais. Ele não pensa duas vezes para deixar a virgindade da irmã como pagamento ao policial, mas aquilo – sendo mais preciso: a boceta da madrasta – o incomoda profundamente.

A nudez da irmã aparece num sonho proibido, é um tabu que diz respeito ao sagrado, é o restinho de pureza que ainda sobrevive naquela família (e a menina é a única personagem que Friedkin dedica uma atenção mais carinhosa, incluindo o pouco que vemos de sua relação amorosa com o policial). A nudez da madrasta, por sua vez, é um tabu de fundo profano, é ofensiva, suja, porque é consciente de sua potência sexual. Nesse sentido, o excesso bestial do desfecho esconde que aquela é, na verdade, uma cena de limpeza: é preciso expurgar o mal, tirar do mapa uma família como a que Friedkin apresenta.  Não é estranho que tudo termine com o anúncio de uma nova vida, uma esperança germinada em meio ao caos. O que o policial tenta fazer no desfecho é reorganizar aquilo tudo, dar novamente um sentido familiar, mesmo que forçado, à família desestruturada. Ou seja: patriarcalizar na marra. Entende-se, rapidamente, por que as principais punições aqui são direcionadas às duas mulheres: a mãe e a puta.

Há quem argumente que Killer Joe é um exemplar transgressor por não esconder o corpo, por tratar o sexo e a violência de forma transparente, sem recorrer a representações cartunescas ou covardes. O modo como Friedkin mergulha na sujeira realmente diferencia seu filme de boa parte dos pares contemporâneos do cinema norte-americano, entregues a uma sensibilidade infanto-juvenil, especialmente quando encaram o (ou fogem do) sexo. Mas não podemos esquecer que os conservadores já aprenderam há tempos a parecer atraentes, perigosos – não há mais a necessidade da luta entre o bem e o mal, dos velhos esquemas maniqueístas que deixavam claro quem era quem. Hoje basta mostrar como o diabo é capaz de afundar em sua própria maldade. É o que vemos em Killer Joe: todos pagam o preço de suas escolhas. O cineasta também.

Publicado originalmente em abril de 2013 no Zinematógrafo #2

pierre perrault: palavra e utopia

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Não é de hoje o mal-entendido entre cinema e palavra. Em muitos casos, o desencontro nasce do juízo tolo de que a literatura deve permanecer distante dos filmes. Mas palavra não é literatura. Antes de qualquer coisa, ela é som. E como diz Manoel de Oliveira, um elemento mais cinemático, ou seja, mais relacionado ao movimento, do que a imagem. Uma imagem pode ser contemplada em repouso; a palavra falada, não.

É aí que encontramos Pierre Perrault, na ideia de que não há repouso para as palavras – e que por isso mesmo elas são capazes de desarmar a linguagem. Mês passado, Porto Alegre teve a chance de conhecer (e não quis, o público não apareceu), em mostra no Santander Cultural, a obra completa deste cineasta celebrado desde os anos 1960, quando a crítica francesa descobriu um “novo cinema canadense”, mas pouco visto – seus filmes são raros até na internet. Mais do que documentários, Perrault realiza filmes sobre pessoas que falam. E que precisam falar: em sua obra vemos que a língua francesa é sinônimo de resistência política num Canadá assustadoramente anglo-saxão.

Ao aproximar a língua da revolução juvenil, Acadie, Acadie?!? (1971), figura como uma obra chave de sua filmografia. Há uma cena significativa: quatro estudantes estão na assembleia para reivindicar a oficialização do idioma francês na cidade que dá título à obra. Tudo é construído a partir da palavra, o enquadramento evita o rosto das autoridades e encontra os jovens de costas. É uma cena de jogo de linguagem, cada um dá o seu golpe, sua cartada. Os jovens francófonos são os mais fracos, é evidente a insegurança de suas falas, pois estão em minoria, num espaço que não é deles e, ainda por cima, proibidos de discursar em sua língua original, apesar da enorme insistência. Perrault faz questão de mostrar que a opressão acontece em função e através da palavra, pelo modo agressivo e debochado como as autoridades respondem e pela proibição do francês naquela situação. No fim da vida, mais especificamente na última cena de sua obra, Perrault filmaria a batalha entre bois em Cornualhas (1994). Ali, os animais desfilam cabeçadas na luta pelo território. É muito próximo do que vemos em Acadie, Acadie?!?, com a diferença de que, na assembleia municipal, a arma é a palavra e o território é a língua.

O interessante é que, nesse cenário (e mesmo favorável à independência do Québec), Perrault tem a sensibilidade de introduzir um ponto cego na ideia de que a língua francesa representa uma marca identitária sólida da região francófona do Canadá. Em Um País sem Bom Senso (1970), por exemplo, a premissa da unidade pela linguagem é desconstruída a partir do mosaico de sujeitos falantes e da variedade incrível dos usos da língua. Do pescador ao intelectual, do político ao índio, temos uma polifonia de vozes, discursos, sotaques, dialetos e, evidentemente, histórias. Já em Acadie, Acadie?!?, apesar da ideia em comum de que a morte da língua é a morte de um povo, a coesão da revolução estudantil começa a perder a força quando os personagens trocam palavras, ou seja, colocam a língua em ação: os conflitos se tornam inevitáveis, se a língua tem o poder de aproximar, também tem o de distanciar.

É certo – e aqui vai um parêntese importante – que documentaristas brasileiros precisam conhecer a obra de Perrault urgentemente. Por diversos motivos, mas em primeiro lugar pra aprender que não se busca linearidade onde ela não existe. Trata-se do mal dos nossos filmes, quase todos realizados por carniceiros do audiovisual que reconstroem discursos a partir de uma obrigação narrativa, violentando o pensamento daquele que fala. Como bem definiu o crítico Sérgio Alpendre, é a “síndrome de Huguinho, Zezinho e Luisinho”: ninguém termina um raciocínio, mas tudo se articula de forma impecável, como se houvesse uma linha mestra entre os pensamentos de pessoas que pouco têm em comum. Desde Para que o Mundo Prossiga (1963), seu primeiro e cultuado longa-metragem em parceria com Michel Brault, o canadense opera num sentido oposto, valorizando a polifonia, a diferença, o choque entre os discursos, promovendo uma investigação da linguagem a partir do que a fala tem de elemento desestabilizador.

Trata-se da questão de Perrault: tirar a linguagem do trono de ouro. Na boca de seus personagens, ela está viva, movediça, impossível de ser imobilizada. Lembramos da faísca inicial de Manoel de Oliveira, que não é gênio por acaso, pois o cinema, por lidar sempre com a ação, com o movimento contínuo, é o espaço perfeito para que se visualize a linguagem distante do terreno transcendental e, consequentemente, mais próxima dos homens, daqueles que a criaram e que a usam das mais diversas maneiras no dia a dia. Impressiona a contemporaneidade da obra de Perrault com a guinada filosófica que se afasta do beco sem saída metafísico e vê no ato da fala a possibilidade mais interessante de se questionar a linguagem. How to do Things with Words, de J.L. Austin, é publicado postumamente em 1962. O Speech Acts de John Searle viria ao mundo em 1969. O canadense não era o único no cinema a pensar a linguagem naquele momento, mas talvez tenha sido o que mais concentrou suas investigações numa abordagem pragmática, que vê a fala como sinônimo de ação.

Encontramos certa proximidade em alguns dos primeiros filmes de Werner Herzog. Em Últimas Palavras (1968), temos um homem, o único sobrevivente de uma ilha grega, que se nega a falar. A interação entre ele e as outras pessoas se dá com a música. Apesar do gosto de fim de mundo em Herzog e do gozo interminável em Perrault, os dois parecem concordar que a linguagem só existe enquanto é usada. Isso fica bem claro, em Herzog, no documentário fabuloso O País do Silêncio e da Escuridão (1971), sobre cegos-surdos que precisam descobrir uma linguagem própria (a cada um deles, não a todos cegos-surdos) para se comunicar. Não existe uma linguagem suprema, que contemple o mundo. Mais pessimista, extremamente alemão – a referência grega não aparece impunemente –, Herzog é o cineasta das últimas palavras (e das atitudes derradeiras, dos últimos homens, e, é claro, dos últimos atores – ele mesmo, Klaus Kinski). Algo de extraordinário precisa acontecer para que o mundo prossiga. Já o sereno Pierre Perrault é o cineasta das primeiras palavras. É o que testemunhamos em sua obra: em movimento, a palavra é sempre uma primeira palavra.

* Publicado pela primeira vez no site do Jornal Tabaré, em julho de 2012

jersey boys

jersey boys

Tommy DeVito, o empreendedor malandro do bairro, encara o espectador e ajuda a contextualizar a história: naquela vizinhança italiana da Nova Jersey dos anos 1950, existiam poucas maneiras de vencer na vida, entre elas, entrar para a máfia e virar um artista de sucesso. Num primeiro olhar, essa é, sem tirar nem por, a trajetória dos Four Seasons que Clint Eastwood conta em Jersey Boys, adaptação livre do musical da Broadway sobre o célebre grupo.

Há mais, no entanto. Não espere um musical nos moldes (clássicos ou modernos) mais reconhecíveis, nem uma montanha-russa exageradamente intensa à la Scorsese sobre jovens ítalo-americanos que descobrem a fama ao mesmo tempo em que são dragados pela máfia. Um dos últimos elegantes da Hollywood moderna, Eastwood fez um filme inesperado sobre os charmes e as regras – esses parceiros grudentos – da indústria da música pop dos anos 1960.

Os personagens falarão com os espectadores mais vezes ao longo do filme, afinando passagens importantes da biografia do grupo, comentando entrelinhas sobre os amigos que a narrativa não quer dar conta, fazendo com que uma história que percorre mais de uma década não seja interrompida por nada.

Jersey Boys, de fato, não é um filme que perde tempo. Os pequenos roubos, os encontros e desencontros com as mulheres, a fidelidade à italiana entre os integrantes, tudo encaminha a narrativa para o palco. Desde cedo, todo sabem que Frankie Valli, “a voz de anjo”, conhecerá o sucesso. Por isso ele é tão protegido, pela máfia, pelos companheiros de grupo, por produtores, até terminar sozinho, encarando ao mesmo tempo seu fracasso pessoal (o divórcio, a relação problemática com a filha, além de uma tragédia familiar) e o sucesso da carreira solo. Pois ao contrário de um Bird – para citar outro mergulho de Eastwood na biografia de um músico – a arte aqui não se mistura com a vida. Não poderia ser diferente (e aí os dois filmes se aproximam, mantendo uma fidelidade constante a cada universo representado).

Ameaçados por mafiosos no camarim de Ed Sullivan, incomodados com acordos feitos às escuras, abalados pela morte de pessoas amadas, Os Four Seasons nunca deixarão de apresentar sorrisos e harmonias intocáveis. É justamente esse grupo, o da música e imagem perfeitas, ou seja, o modelo ideal da indústria musical até meados dos anos 1960, quando o rock passa a obrigar outra postura na agenda juvenil, com novos valores de subversão, que Clint Eastwood retrata (e de alguma forma lamenta seu fim) aqui.

Sem panfletos nem granadas, o cineasta se apropria da história dos Four Seasons para fazer, também, um filme melancólico que encontra seu fim no momento em que o homem lança o primeiro olhar para trás e não consegue ver muita coisa com nitidez. Sobra, mais uma vez, o palco, o porto seguro, onde se pode estar profundamente sozinho e acompanhado pelo mundo inteiro: Valli apresenta Can’t Take My Eyes Off You “provavelmente um desastre, pois não é pop e nem é rock” pela primeira vez. Surge uma elipse gigantesca que retoma o grupo já num outro contexto, o das homenagens “oficiais” aos clássicos do rock e depois os créditos, que remontam ao modo como o próprio cantor se reinventou comercialmente nos anos 1970, com a celebração nostálgica – e ironicamente fantasiosa, pois insere os tiques do musical que o filme ignorava por completo até então.

Por tudo isso, não me parece uma falha o personagem de Frankie Valli também ser extremamente protegido pelo cineasta. Há sempre uma canção para substituir a dor, há sempre um hit para contornar a crise, é evidente. Mas as bandas pop não existem pra isso? O próprio artista questiona as obrigações profissionais ao longo do filme, sem demonstrar, entretanto, muita vontade de enfrentá-las. Mais interessado na estrela em relação ao homem que no homem em relação à estrela, invertendo, dessa forma, as convenções das cinebiografias recentes de figuras icônicas, Eastwood consegue algo raro: revelar as tensões da escalada de um dos operários mais talentosos da história da música sem deixar de amar o resultado de seus esforços.

* Publicado pela primeira vez na edição de maio/junho do Zinematógrafo. 

pina: o amor é mais frio que a morte

Como fazer um filme, ainda mais um filme que parece dedicado à dança, ou seja, que depende da presença física, sobre alguém que não está mais aqui? É curioso, mas a fragilidade e a beleza de Pina nascem do mesmo lugar. A ausência da coreógrafa alemã é o que dá corpo: mais do que um filme para Pina, como aparece na assinatura final de Wim Wenders, é um filme sem Pina. Ela é um fantasma, encarnada em raras imagens de arquivo e gravações de voz, mas pesando em todos os detalhes, nos rostos silenciados, nas palavras mancas, em todos os espaços vazios.

Não é estranho que sua voz dura (nem preciso citar suas imagens) tenha mais força do que qualquer cena de dança, por mais deslumbrantes que elas sejam. As curtas aparições de Pina Bausch são esmagadoras, pois amplificam ainda mais o drama: o que fazer depois da morte da mãe, depois que a pessoa que nos orienta não está mais aqui? É o que fica evidente nos depoimentos dos dançarinos de sua companhia, revelando uma gama de sentimentos – do respeito excessivo ao carinho familiar –, que parecem desnorteados com o buraco que ela deixou.

Wenders nem precisaria citar a dança da morte de Bergman, pois a impressão é a de que todas as cenas estão meditando sobre a morte, mesmo que originalmente tenham sido criadas a partir de outros temas. Nesse sentido, o 3D é usado justamente para ressaltar a ausência, trata-se de um filme contraído, muito mais pra dentro do que pra fora, algo atípico do que se costuma trabalhar com a terceira dimensão no cinema. Mas a fragilidade reside justamente nisso: se por um lado a tentativa de supervalorizar a profundidade de campo cria espaços enormes que dão conta do vazio emocional da obra, ela acaba minando a relação dos dançarinos com o espaço, algo primordial num filme todo composto por cenas de dança. É como se os corpos estivessem materializados na imagem, com uma frieza digna de um holograma.

Se não convence como um filme sobre e, principalmente, de dança (e muito menos como “o primeiro filme de arte em 3D, como a publicidade quer emplacar), é porque se trata de um filme sobre a morte – nesse sentido, um típico filme de Wim Wenders.

isto não é um filme ou quando dois filmes iranianos estão em cartaz na sua cidade

É claro que Isto Não é um Filme é uma obra política. O contexto iraniano está presente o tempo todo, da primeira à última cena. Mas o drama do filme não é político. Pelo menos não no sentido mais restrito do termo. O drama de Jafar Panahi é essencialmente cinematográfico. De cara, há a câmera e ele: planos estáticos, um café da manhã corriqueiro, fala ao telefone, come um pedaço de pão, num minimalismo extremo. Mas aquilo não dá filme, pelo menos na opinião de Panahi. Tentando resolver o impasse, busca um amigo documentarista, Mojtaba Mirtahmasb, e o filme toma outro rumo: há o diálogo, agora a câmera pode acompanhar o irrequieto cineasta em sua prisão domiciliar. A impressão é a de que teremos um filme, o cineasta não esconde a euforia, resolve encenar um roteiro proibido na sala de sua casa, usando o tapete e uma cadeira como cenário. Mas a história mal começa e Panahi interrompe novamente: não dá filme.

Para tentar explicar o fracasso, Panahi recorre a cenas das próprias obras. Primeiro fala da questão do ator, do que ele espera de um ator, que não saiba exatamente como agir, mesmo tendo um texto para seguir. Cita uma cena de Ouro Carmim (2003) e mostra como a imprevisibilidade do ator pode ser responsável pela mise en scène. Em seguida, exibe um trecho de O Círculo (2000) e ressalta a presença do espaço, do cenário. Aqui, segundo Panahi, o cenário é responsável pela mise en scène, a câmera e os atores estão em função dele. Fica claro que o iraniano é um cineasta de reação, precisa de um estímulo – também vemos isso no trecho que ele exibe de O Espelho (1997) em que a menina decide parar de atuar. Panahi precisa reagir rápido para entender aquela situação e colocá-la no filme.

Pode-se questionar o aspecto didático da obra, mas ele é fundamental se considerarmos o contexto, a prisão do cineasta. Pois a partir das explicações de Panahi, entendemos perfeitamente o seu drama:  como estabelecer uma mise en scène de reação trancado em seu apartamento, num espaço que ele controla completamente? E mais, sem atores, apenas com o próprio corpo? Definitivamente, não dá filme.

Mas Isto Não é um Filme não é uma tragédia, ao menos num sentido cinematográfico, como nos mostra o belo desfecho (num sentido político ele guarda o ar de tragédia). Quando vai se despedir de Mirtahmasb, Panahi esbarra com o homem que recolhe o lixo de seu prédio. Surge uma faísca. Um estranho, um espaço externo. Sem pensar duas vezes, o cineasta pega a câmera e segue o rapaz pelo elevador, na pequena odisséia que é a busca pelo lixo de cada andar. Não se sabe o que vai acontecer, se haverá lixo nos corredores, se o jovem precisará tocar a campainha e pegar as sacolas com os moradores. Panahi permanece com a câmera dentro do elevador e interroga o rapaz, que faz mestrado em arte e vive de bicos.

É evidente o alívio de Panahi em todo o desfecho. Agora ele pode reagir, consegue estabelecer um diálogo com alguém que ele não conhece o suficiente. E ainda há o elevador como um espaço imprevisível (aliás, o elevador é sempre um espaço imprevisível, por menor que seja), potencializado pelas conversas fora de quadro que o jovem tem com os moradores. A última imagem, de uma enorme força estética e política, é a confirmação: há filme.

Do outro lado, temos A Separação. A catástrofe que é A Separação, de Asghar Farhadi. Pois justamente o que não dá filme, o drama de Panahi, é o que sustenta a obra de seu conterrâneo. A Separação é uma ode à impaciência. Impaciência diante dos atores, diante dos espaços, diante do tempo (o que é a montagem no piloto automático destruindo cenas fundamentais, como a discussão entre o protagonista e a mulher que o acusa na delegacia?). A impressão é a de que se tivesse outros atores e outros espaços, Farhadi faria exatamente o mesmo filme. Aliás, Se Farhadi estivesse preso em seu apartamento, ainda assim era capaz de fazer o mesmo filme. Sua mise en scène, apoiada por uma montagem apressada que está sempre se antecipando à ação, é comparável a alguém que mastiga a comida e, pleno de orgulho, cospe os restos de volta ao prato.

O ápice da impaciência, e que liquida de vez com o filme, é quando Farhadi trata o choro da filha do casal divorciado como mera informação. Vemos a adolescente chorando no carro, é uma situação complicada, a separação dos pais, o problema com a empregada que ela gostava, a saúde do avô. Pode-se dizer que todo o drama do filme está contido naquele choro, mas a imagem dura dois ou três segundos. Uma lágrima cronometrada que sequer desce o rosto inteiro da menina. É um resto de um choro.

Não é estranho que A Separação tenha êxito enorme no Ocidente, vencendo o Urso de Ouro, Oscar e tudo mais. A fórmula do sucesso é precisa: espectadores impacientes, que pagam caro para entrar numa sala de cinema e mal conseguem olhar uma imagem, são tarados por filmes impacientes.

anotações sobre yoshishige yoshida

A Mulher do Lago (1966)

Yoshida é um caso à parte. E não apenas do cinema japonês. Talvez seja pouco citado por estar identificado a um grupo, a Nouvelle Vague Japonesa (grupo que nunca existiu de fato), problema que acompanha boa parte dos cineastas dos chamados Novos Cinemas dos anos 1960: costuma-se lembrar somente da ruptura coletiva. E assim nomes interessantes se tornam um verbete exótico da história do cinema.

Mas Yoshida é um cineasta enorme, tem uma das trajetórias mais singulares daquele período. Foi um dos poucos herdeiros imediatos de Alain Resnais, por exemplo, que conseguiu absorver, com invejável maturidade, as possibilidades narrativas inauguradas pelo francês. Da mesma forma, assumiu o parentesco estético com Michelangelo Antonioni sem que a sombra do italiano o atrapalhasse. Yoshida entendeu rapidamente o valor das rupturas estabelecidas no início da década e descobriu de que forma poderia ir além.

Antes da ruptura, no entanto, olhamos para As Termas de Akitsu (1962), filme mais famoso da fase em que ele ainda respondia pela produtora Shochiku. Trata-se de um melodrama de aura clássica, uma história de amor elíptica que sobrevive à guerra mas não às diferenças entre o homem e a mulher. A abordagem elegante da tragédia amorosa dá a entender que Yoshida aprendeu muito com o melodrama norte-americano dos anos 1950. Não por acaso, o uso do scope é essencialmente harmônico, bem distante do que veremos em filmes mais radicais do final dos anos 1960.

Apesar do aspecto mais comportado, vale notar como As Termas de Akitsu já se posiciona como um representante significativo da mudança do estado das coisas do cinema. Pois a história do cinema cabe muito bem no modo como a relação entre o homem e a mulher é retratada, aqui já com certo grau de complexidade. Nesse sentido, não é exagero pensar que o filme faz uma ponte importante entre o melodrama clássico e as retomadas do gênero no cinema contemporâneo. Se pegarmos a referência de Douglas Sirk, que parece forte em As Termas de Akitsu, lembramos que muitas vezes tudo girava em torno possibilidade do amor, mesmo em situações extremamente adversas. Em seu filme, Yoshida já acentua a impossibilidade de um amor que parece muito próximo, algo que pode ser visto aos montes nos filmes mais celebrados de um Wong Kar-wai. Também encontramos o tom de reminiscência na narrativa, da lembrança dolorida que toma conta do corpo inteiro do protagonista num momento em que ele não espera – ainda que sem a mesma intensidade dramática da obra do cineasta chinês.

A Chama e a Dama (1967)

As Termas de Akitsu (1962)

Em 1965, ao lado da esposa e musa Mariko Okada, Yoshida rompe com a Shochiku e monta uma produtora independente. Não deixa de ser o momento em que suas personagens femininas também se libertam. Em As Termas de Akitsu, a mulher ainda é submissa, permanece sempre à espera, como se não pudesse evitar seu destino. É uma história narrada pelo homem, inclusive.

Um parêntesis: pelo que se pode ver no cinema japonês dos anos 1960, não era qualquer um que conseguia filmar uma mulher livre dentro das grandes produtoras. Este, aliás, é Shohei Imamura. Há uma cena em Desejo Profano (1964), entre as mais impactantes que já vi, que simboliza bem a ruptura em relação à personagem feminina que Imamura propunha naqueles anos. A cena: enquanto é estuprada, a protagonista é ameaçada com um ferro quente. Na superfície espelhada do ferro, vê a imagem disforme de seu rosto – como se ali se visse pela primeira vez e justamente por isso, não conseguisse realmente se ver. Talvez seja a cena que rompa, de vez, com a imagem clássica da mulher japonesa no cinema – extremamente submissa e condescendente com sua própria tragédia. Não é qualquer cineasta que filma a libertação da mulher através de um estupro. A delicadeza contundente de Imamura impressiona. 

Em sua fase independente, Yoshida questiona até mesmo o valor libertador do sexo para a mulher.  É o que vemos na obra-prima A Mulher do Lago (1966), que justifica desde as primeiras cenas a interrogação final da protagonista (sempre Mariko Okada): você me acha monstruosa? No filme, ela se relaciona com três homens: o marido, o amante e um estranho que a chantageia com fotos comprometedoras. Há um descompasso evidente entre a protagonista e os homens, algo que nem mesmo o sexo extraconjugal consegue encerrar.

É marcante a cena em que ela resolve transar com o chantagista, na beira da praia, nas sombras seguras de um barco abandonado. Há uma força tremenda porque antes de tudo é uma cena de sexo mesmo: seca, direta, sem floreios. Difícil encontrar algum valor metafísico. E quando a mulher abre os olhos e encara a câmera, ela parece pedir silenciosamente, pro filme e pro espectador, uma paciência, um olhar menos inquisidor. Pois ali ela é apenas uma mulher que descansa depois de transar. É uma cena claramente oposta ao estupro de Imamura. Dificilmente tiramos uma lição a respeito daquela mulher – muito menos a respeito da figura da  mulher. Talvez a única premissa que podemos pensar a respeito de A Mulher do Lago,  é que para Yoshida o drama da mulher não precisa estar relacionado ao homem.

Em contraste, quando nos deparamos com o filme mais celebrado de sua fase experimental, Eros + Massacre (1969), é justamente a posição das mulheres que confere um tom desconcertante à história do revolucionário anarquista misteriosamente assassinado na década de 1920. A partir delas, tudo parece ter um peso – o amor, a revolução, a liberdade, os pensamentos, as palavras –, como se cada mínimo gesto mudasse o rumo de todo o mundo. De certa forma, a história do cinema japonês nos conta que ali, desde sempre, o rumo das coisas é reflexo imediato do drama das mulheres. E é o grande tema dos filmes jovens nos anos 1960. Mesmo quando mergulha-se em questões políticas, como é o caso de Eros + Massacre, invariavelmente a mulher tem um protagonismo destacado.

Talvez a necessidade urgente de uma ruptura naqueles anos (e não apenas no cinema) justifique o abismo que existe entre as crises femininas no Japão e em outros “jovens cinemas”. Pois quem, nos anos 1960, filmava cenas de sexo em que a condição da mulher (ou a impossibilidade dela) era exposta de forma tão visceral como Imamura e Yoshida?

***

Em Confissões Entre Atrizes (1971), salta aos olhos o modo como Yoshida usa o desenquadramento num filme dedicado aos dramas pessoais das personagens. Por se tratar de um filme intimista, causa ainda mais desconforto. Purgatório Eroica (1970), por exemplo,  é todo fora do lugar – uma trama política em que os personagens jogam entre si e assumem múltiplas identidades. Há uma coerência com a assombrosa ruptura estética. Difícil pensar no filme de outra forma, enquanto Confissões Entre Atrizes poderia ser filmado, tranquilamente, como um melodrama de tom clássico, mesmo revelando quebras temporais.

Confissões Entre Atrizes (1971)

O desenquadramento está presente na obra de Yoshida desde a metade dos anos 1960. A saída da Shochiku libertou suas mulheres e sua câmera, pode-se dizer. Purgatório Eroica é um manifesto máximo do que se pode fazer com o recurso no cinema. Da primeira à última cena, sem exceção, a câmera busca insistentemente a descentralização dos personagens, diminutos em relação a tetos, paredes, pilastras e objetos. Já em Confissões Entre Atrizes, Yoshida investe no desenquadramento a partir de uma incansável câmera na mão.

Sobre o desenquadramento, é importante destacar que há duas grandes possibilidades, uma relacionada ao vazio e outra ao caos. A primeira consiste em esvaziar o centro do quadro, como descreveu Pascal Bonitzer no final dos anos 1970, situando o personagem nas extremidades enquanto nada acontece no espaço em que nossos olhos estão acostumados a ver algo acontecendo. É o que encontramos em filmes de Antonioni e Straub. Mas se pensarmos que o desenquadramento representa uma oposição firme ao cinema clássico (é a tese de Jacques Aumont em O Olho Interminável, tanto que Bonitzer se torna contraponto de David Bordwell), no sentido de que rompe com a ideia de que o homem é o centro do quadro, a desorganização do espaço também precisa ser considerada.

Porque é fundamental lembrar que o cinema clássico raramente trabalha com a centralização ao pé da letra (Manoel de Oliveira faz isso e causa estranhamento), mas com uma composição visual extremamente harmônica que destaca o homem, independente do espaço em que ele esteja no quadro. Foi a grande contribuição de Méliès para além das trucagens e magias. Nesse sentido, o desenquadramento que coloca um vazio no centro não representa exatamente uma oposição, pelo menos num sentido estritamente estético, ao enquadramento. Encontraremos real oposição num trabalho de desorganização do espaço, algo que já vemos, mesmo que timidamente, em filmes dos anos 1930 de Yasujiro Ozu (não por acaso um cineasta que pauta muita coisa radical do cinema contemporâneo, de Claire Denis a Hou Hsiao-hsien). Embora seja reconhecido pelo vazio, Yoshida trabalha com as duas possibilidades, valendo-se muitas vezes de objetos para impor um caos à cena.

Há ainda um aspecto essencial do desenquadramento de Yoshida que o diferencia de outros cineastas que tiraram o homem do centro: a valorização do ato de desenquadrar. Em filmes como A Noite (1961), de Antonioni, e Não Reconciliados (1965), de Straub, os planos são rigorosos, já encontramos o mundo em desordem, o homem em desvantagem. O susto não é tão grande – ainda mais no caso do italiano, que costumava usar o recurso nos momentos em que a narrativa justificava, como na andança sem fim de Jeanne Moreau em A Noite.

Já em Yoshida, há a procura incessante pelo desenquadramento. Sua câmera se movimenta como qualquer outra, como se fosse colocar o mundo em ordem, mas encontra uma imagem distante de qualquer expectativa. Não deixa de ser uma forma de celebrar a criação da imagem, percebemos todo o processo, do início do travelling até a composição final. É um cinema de pincelada. Curioso que Pascal Bonitzer, admirador de sua obra, o tenha ignorado na hora de dissertar sobre o tema. É estranho, pois sua abordagem deleuziana, “o desenquadramento como uma perversão, como a arte de mutilar o corpo e expeli-lo para além do centro e focar nas zonas estéreis”, está muito mais próxima de Yoshida do que de Antonioni e Straub – ambos citados.

Nesse sentido, Yoshida coloca-se como um anticlássico por excelência. Se olharmos para Otto Preminger, por exemplo, cuja mise en scène se tornou emblema do que há de mais rebuscado na busca pela proeminência do ator, de sua ação narrativa, ou seja, a síntese do que se pede por cinema clássico, vemos claramente a ruptura. A câmera de Preminger se movimenta tanto quanto a de Yoshida. Se raramente percebe-se a busca de Preminger é porque ela é a busca do plano perfeito. Quando o mundo está em ordem, não notamos o mundo.  Em Yoshida, ao contrário, a câmera encontra um vazio que imediatamente destaca a existência da imagem.

Purgatório Eroica (1970)

Em Purgatório Eroica, há uma pequena cena que dá conta da busca de Yoshida pela ruptura no enquadramento. Uma personagem está num corredor, a câmera a encontra num contra-plongée esquisitíssimo que revela mais o teto do que qualquer coisa. A menina recua, encosta na parede e, mesmo no centro da imagem, permanece engolida pelas paredes do apartamento, como se estivesse dentro de um caixão. Ela entra em outro quarto e a câmera, num movimento discreto, consegue desenquadrar dois personagens ao mesmo tempo a partir de um espelho. Ela permanece atrás do espelho, com o rosto quase esquecido na imagem; o homem é visto em seu reflexo, numa das extremidades. Ela sai de quadro e a câmera, novamente num movimento suave, coloca o rosto do homem como o menor elemento de uma imagem constituída apenas por partes de um espelho e de uma cômoda. Tudo isso sem um corte, sem malabarismos visuais ou qualquer virtuosismo: a ação da câmera é elegante como a do cinema clássico, mas a imagem traz o homem em pedaços.

Podemos ver no desenquadramento radical de Yoshida, que era assumidamente anti-humanista (detestava o cinema de Kurosawa por isso), uma espécie de pesadelo renascentista – e aí encontramos um paralelo forte com o processo que nasce (ou pelo menos se amplifica) no pós-guerra: a recusa de certos predicados essencialistas que se tentou carimbar no cinema desde as primeiras décadas, desde que Ricciotto Canudo afirmava que o cinema era o sonho renascentista, a arte que conseguia revelar o mundo através do homem. Hollywood absorveu tudo isso, mesmo ignorando os pressupostos metafísicos, colocando o homem como o centro de seu universo, tanto num sentido estético quanto narrativo. Tudo parte do homem, é ele quem dá sentido ao filme, à trama, ao quadro. Não é por acaso que Orson Welles, ao interrogar tal mandamento, foi rapidamente expulso de lá.

A percepção de André Bazin diante do neorrealismo é brilhante, um prenúncio do que viria nos anos 1960 (e não apenas no cinema): “o próprio homem não é senão um fato entre os outros, ao qual nenhuma importância privilegiada poderia ser dada, a priori”. É algo que desagua em Antonioni, quando temos o homem como um ser no mundo, não mais como o dono, como a origem dele. Por isso que em seus filmes a posição do personagem em quadro é sempre relativa. Pode haver um primeiro plano clássico e pode haver um desenquadramento desconcertante. O contexto é fundamental.

Se o cinema de Yoshida parece mais incômodo, é porque recusa a ideia do contexto na definição do lugar do homem no mundo. Para ele, o homem sempre estará em desvantagem – ironicamente, dentro de um mundo que ele criou. É por isso que o japonês usa menos a borda da imagem e mais as paredes e os tetos de apartamentos modernos para construir seus desenquadramentos. E aí percebe-se que no fundo a perversão de Yoshishige Yoshida é filmar a morte do homem por ele mesmo.

inquietos

Em Inquietos, chama atenção o modo como Gus Van Sant usa as canções Two of Us, dos Beatles, e The Fairest of the Seasons, de Nico. Ou melhor, chama a atenção o modo como ele edita as duas, suprimindo partes importantes, justamente aquelas que sinalizam uma mudança, tanto na estrutura melódica quanto na poesia. Em Two of Us, não há o trecho em que o casal protagonista revela ter memórias mais longas do que a estrada que está adiante. Há apenas as partes que remetem ao presente, com o casal fazendo coisas banais, de pura inconsequência de quem está apaixonado, como queimar fósforos e escrever cartas na parede. No fim, surge a sempre poderosa voz de Nico numa canção também baseada no momento. Não mais um casal, apenas uma pessoa que precisa escolher. “Agora” é a palavra-chave, se repete ao longo de toda a composição. Gus Van Sant recusa, dessa vez, o momento em que o narrador encontra os olhos da pessoa amada, e aproxima a primeira da última estrofe, da indecisão inicial à conclusão de que ele partirá na mais bela das estações. Assim como na música dos Beatles, ignora o verso que indica uma lembrança a dois do narrador (embora esteja no presente), e que destoa da indecisão solitária das estrofes principais.

O trecho dos Beatles é o de um casal que goza a vida de forma poeticamente irresponsável. O de Nico é o de um sujeito que viveu algo intenso e projeta o futuro. Praticamente resumem a obra, parece ser um caminho interessante para compreendermos os protagonistas de Inquietos. Num primeiro momento, talvez aquilo tudo pareça estranho – jovens com um certo gosto pela morte. Seria normal, até pelas situações que são colocadas, vê-los como duas figuras mórbidas. Mas o olhar de Gus Van Sant é doce. Não há morbidez, mas dois jovens que aprendem a amar. Por isso que é fácil se identificar com o casal, mesmo quando correm num velório ou conversam num cemitério.

Até porque fica claro, desde o início, que o modo irresponsável como lidam com a morte é o grande elemento charmoso dos dois. Irresponsável, aqui, num sentido batailliano, como o casal da canção de Paul McCartney que faz coisas apenas por fazer, apenas pelo impulso da paixão, sem a preocupação de ser alguém funcional para o mundo. Se é verdade que o medo da morte é a única coisa que diferencia o homem dos animais, os dois realmente parecem viver num mundo à parte. Não por acaso, temos poucos personagens no filme – e o que mais se destaca é o fantasma de um kamikaze japonês que acompanha o rapaz, alguém que está apenas em seu universo.

Essa vivacidade diante da morte é o ponto alto de Inquietos. Importante lembrar da enxurrada de filmes que esbarram no tema atualmente. Nunca o além (ou o trauma da morte) vendeu tanto. E a obra de Gus Van Sant parece justificar a frase do fantasma de Tio Boonmee que pode recordar suas vidas passadas, de Apichatpong Weerasethakul (outro filme que toca no tema de forma incrivelmentre madura) de que o céu é superestimado e o surpreendente está com os homens aqui. Comparando com dois mamutes de 2011, Melancolia, de Lars von Trier, e Árvore da Vida, de Terrence Malick, o singelo filme de Van Sant se destaca por encontrar um caminho terno para olhar os momentos delicados de seus personagens. von Trier não consegue encarar o sofrimento de suas mulheres, Malick está mais interessado em filmar o céu, talvez querendo encontrar uma resposta divina à tragédia colocada em cena. Em Inquietos, pelo contrário, a câmera mundana de Van Sant não se intimida com o drama do casal e encontra diversas vezes o olhar brilhando de quem está descobrindo um amor enorme. Ou seja, um filme que à beira da morte se preocupa com a vida.

Mas nem tudo são flores. Há uma significativa mudança de tom na segunda metade que quase bota tudo a perder. Abandona-se a ideia do tempo presente como a pulsão narrativa, da irresponsabilidade, da postura inútil e festiva tão bem descrita em Two of Us. É como se o casal que dirigia pra lugar nenhum encontrasse a sua estrada, de certa forma, um ponto final. Eles deixam de brincar e começam a refletir sobre seus problemas, percebem que têm problemas pela frente. A morte começa a assustar.

Isso fica bem claro na cena em que o casal discute. Não é mais o diálogo nonsense que pontua os primeiros encontros dos dois, mas uma cena de marido e mulher, de quem carrega uma fardo, uma história, uma mágoa que se revela no olhar, no tom de voz, algo totalmente distante das aventuras infantis que presenciamos antes. Eles tomam consciência de sua tragédia. Pra piorar, debocham do próprio universo, das inutilidades que nos cativaram. O amadurecimento dos personagens, além de forçado, depõe contra a ingenuidade bonita da primeira parte do filme.

E então, no lugar dos atos fortuitos, das conversas irresponsáveis, começam a surgir cenas que explicam psicologicamente os personagens, principalmente o rapaz. Aos poucos, entendemos por que ele freqüenta funerais de desconhecidos ou por que ele parou de estudar. É como se cada cena surgisse para colocar mais um tijolinho narrativo. Assim como o casal, o filme também se rende ao aspecto funcional. É preciso ser marido e mulher, ter crise de marido e mulher, também é preciso ser filme, ter começo, meio e fim de filme. No desfecho, Gus Van Sant até tenta retomar a poesia da primeira metade, com a contribuição do fantasma japonês, mas o estrago já está feito.

Não deixa de ser o mesmo problema que acontece em Milk, quando Gus Van Sant abandona seus personagens para apenas ilustrar um roteiro. Se não tivéssemos visto Últimos Dias, Elefante e Paranoid Park (ou até mesmo suas obras iniciais), provavelmente a narrativa correta de Inquietos não incomodaria. Mas sabe-se que Gus Van Sant pode estabelecer uma relação mais intensa com seus personagens, confiando neles, inclusive em seus buracos narrativos, em suas incoerências, como aspectos fundamentais de sua poesia. Pois até o fantasma japonês torna-se um elemento de roteiro, quando vira uma espécie de consciência madura do rapaz. Enquanto ele é um personagem autônomo, com suas dores e seus dilemas, também juvenis, permanece como um achado incrível. Não é por acaso que o cineasta recorre a ele para conseguir encerrar a obra fugindo da curva melodramática banal que a mudança de tom ameaça.

Entre belos e desastrados momentos, a obra parece carimbar um forte ponto de interrogação em relação a Gus Van Sant. Se a guinada absurda nos anos 2000 o colocou num patamar altíssimo, seus dois últimos filmes parecem lembrar que sua obra é muito mais irregular do que genial. O que incomoda em Inquietos é que o filme poderia deixar um gosto estranho, num sentido positivo, com a história de um amor diante da morte. No entanto, fica o gosto estranho de estar presenciando a queda daquele diretor que ameaçou ser um dos protagonistas mais instigantes do cinema contemporâneo e que agora vive (novamente) de soluções fáceis. É como se um compositor não conseguisse sustentar a emoção do público com uma melodia dissonante, tendo que recorrer a um refrão, a uma estrutura reconhecível para que a lágrima caia no fim.

top 10 hollywood olha para si

Como o tempo anda escapando, os textos sumiram. Reta final do mestrado e eu só encontro tempo – e motivação – para terminar a dissertação, que é sobre como o cinema pré-anos 1960 percebeu suas possibilidades modernas.  Passei boa parte dos dois últimos anos vendo todo o tipo de filme sobre o cinema, dos mais livres e ensaísticos aos mais prosaicos, em que o cinema é apenas um pretexto narrativo. É uma forma de tentar encontrar as histórias do cinema através dos filmes, já que os teóricos e os historiadores muitas vezes parecem mais interessados em criar o seu próprio cinema do que em dissertar sobre ele. Isso é ótimo, mas era importante que eu começasse a criar a minha história logo.  O top 10 Hollywood olha para si é um modo de manter o blog ativo sem deixar a dissertação de lado.

Escolhi filmes até a década de 1960, que acabou sendo a delimitação da minha dissertação. De qualquer forma, os filmes de Hollywood que olham para si nos 1950 já deixam claro que há um momento forte de ruptura. O que vem depois, assimilando (e muitas vezes domesticando) os atrevimentos dos Novos Cinemas, é uma outra história. Digamos que é um top de filmes da Hollywood clássica – que de clássica nada tem, principalmente se pensarmos numa das principais exigências da modernidade: a consciência de si. Como nenhuma outra cinematografia, Hollywood oferece um olhar bem crítico em relação a sua própria história.

Não se trata de uma lista sobre filmes hollywoodianos sobre cinema, então não entraram filmes obrigatórios como Cidadão Kane, de Orson Welles, e a brilhante trinca de Hitchcock (Pavor nos Bastidores, Janela Indiscreta e Um Corpo Que Cai) que coloca em evidência – e praticamente esgota – a relação entre o homem e a imagem. Da mesma forma, duas obras-primas de Buster Keaton dos anos 1920 também ficaram de fora: Sherlock Jr., que aborda a relação onírica entre espectador e filme, e O Homem das Novidades,  filmaço que deixa obsoleta boa parte das bravatas futuristas do grande Dziga Vertov. O soviético não está nem aí pro homem que segura a câmera em Um Homem com a Câmera, filme-irmão do de Keaton, que nos diz, desde as primeiras cenas, que o seu personagem filma por amor.

Portanto, entraram no top apenas filmes que realmente colocam o universo de Hollywood em cena: das entranhas da indústria ao conflito de egos, dos sonhos ingênuos com sucesso aos pesadelos fantasmagóricos com o fracasso.

10 Fazendo Fita (1928), de King Vidor

Fazendo Fita passa discreto em meio a  monumentos do cinema dirigidos por Vidor nos anos 1920 como A Grande Parada, A Turba e Aleluia!. Se não pode ser comparado com suas obras-primas, também não deve ser ignorado. O tema favorito do cineasta está aqui: o sonho de se tornar grande. A cena da jovem caipira chegando ao lado do pai, boquiaberta, na rua dos grandes estúdios de Hollywood é um primor. Com um humor extremamente ácido, Vidor critica a facilidade com que estrelas são criadas naquele mundo. E de quebra lança um comentário bem interessante sobre o que era considerado arte e o que era desprezado já na Hollywood dos anos 1920.

09 Nasce uma Estrela (1954), de George Cukor

Cukor já havia feito Hollywood, em 1932, um dos filmes mais barra pesada sobre a indústria do cinema, com direito a um suicídio com um tiro na cabeça. A versão de Cukor para Nasce uma Estrela também é poderosa. Evidencia ainda mais o que já fica aparente no original de William A. Wellman, de 1937: enquanto estrelas nascem, outras morrem. No original, há uma clara mudança de protagonismo durante o filme, da caipira sonhadora ao ator em plena decadência. Aqui, Cukor já coloca desde o início o personagem do ator em primeiro plano, contando com a forte presença de James Mason. Seu charme aristocrático dá outro tom ao personagem. É interessante como o filme é todo construído a partir de duas narrativas, a de Mason é densa, a da caipira interpretada por Judy Garland é onírica, sua ascensão é mostrada através de números musicais espetaculares. A cena de suicídio, que é basicamente uma elipse poética no filme de Wellman, aqui é ainda mais bonita. Vemos o mar refletido nos vidros da casa durante um bom tempo. É o prenuncio, engole o personagem antes dele realmente se entregar. George Cukor sabia ser clássico.

08 A Condessa Descalça (1954), de Joseph L. Mankiewicz

Hollywood olha para si novamente sob um céu nebuloso. Bom, o filme começa num funeral, o funeral de uma moça que se tornou atriz de sucesso, interpretada por Ava Gardner. O que segue são longos flashbacks entrecortados, de várias pessoas que estão em seu enterro. Não temos a tradicional história em que nasce uma estrela. Pra começar, a jovem espanhola demora muito pra ser convencida a se tornar atriz. Não é um sonho dela. Sua trajetória em Hollywood é mostrada de forma abrupta, a grande cena é uma festa em sua mansão em que ela parece desprezar todo mundo. Anticlímax total. Para completar, o filme já olha para o próprio cinema de forma crítica. O personagem de Humphrey Bogart tece comentários sobre roteiro, sobre atores, sobre os clichês, sobre a relação entre o cinema e a vida, coisa que não se vê tanto nas obras de Hollywood sobre si. De qualquer forma, em determinado momento o filme abandona o cinema para seguir a jovem atriz que se torna condessa. Ela é sempre triste, distante, um personagem bem complexo, difícil de olhar. Interessante que o filme é todo conduzido por narrações e ao mesmo tempo deixa uma porção de coisas não ditas.

07 Cantando na Chuva (1952), de Stanley Donen e Gene Kelly

Até Cantando na Chuva, boa parte dos filmes hollywoodianos sobre o cinema eram no presente, o lema era: “o sucesso é agora”. Sintomático que nos anos 1950 Hollywood comece a olhar para trás, e ainda para momentos em que conseguiu superar adversidades. Aqui o tema principal é a chegada do som no cinema, sobre como um filme fadado ao fracasso se tornou um sucesso. Um belo comentário indireto sobre a crise da indústria cinematográfica norte-americana nos anos 1950. Sobre isso, há um momento emblemático, quando o protagonista vivido por Gene Kelly se coloca como uma peça de museu. Mas foram tempos de glória, o temor em se tornar museu passaria rápido e daria lugar a algumas das cenas mais celebradas da história dos musicais. Pode-se dizer que Cantando na Chuva inaugura a nostalgia em Hollywood.

06 Contrastes Humanos (1941), de Preston Sturges

Um dos primeiros filmes de Sturges, atípico em todos os sentidos. Mostra duas coisas que são raríssimas nos filmes sobre o cinema em Hollywood: o cineasta como um criador, alguém que não está realizando um trabalho meramente burocrático; e o espectador na sala de cinema. Não por acaso, o filme literalmente sai de Hollywood. A sala de cinema, na verdade, é uma igreja improvisada em que presos podem assistir aos desenhos animados da Disney. Trata-se de uma cena icônica, os sorrisos daqueles homens diante das imagens mudam toda a concepção de cinema do cineasta, homem obstinado a realizar obras políticas à la Frank Capra. Ele poderia ter ouvido, desde o início, a gatinha (Veronica Lake) que o acompanha em sua jornada rumo à pobreza: ela sonha em ser atriz de um filme de Ernst Lubitsch.

05 Almas à Venda (1923), de Rupert Hughes

Uma jóia de filme. Em 1923, já temos basicamente todas as premissas que seriam exploradas nos filmes posteriores, principalmente o retrato daquele mundo como uma terra de sonhos. Logo no início, Hollywood surge literalmente como um delírio, uma miragem no deserto. A protagonista foge do marido psicopata e é salva por um galã que rodava um filme. Depois do sonho, a realidade: é difícil entrar naquele mundo, ela precisa vender a alma. O filme ainda traz imagens documentais incríveis de Charles Chaplin e Erich von Stroheim (nas filmagens do mítico Ouro e Maldição) dirigindo filmes com toda a pompa que um autor de cinema deveria ter. Hollywood demoraria muito tempo para mostrar os cineastas em cena dessa forma novamente.

04 A Grande Chantagem (1955), de Robert Aldrich

Do faroeste ao filme policial, Aldrich foi demolindo radicalmente as estruturas sólidas do cinema hollywoodiano nos anos 1950. Em 1955, olha para aquele universo e mostra o inferno de Hollywood – mais do que qualquer outro filme da época mostrou. Aqui, a indústria do cinema assassina e orquestra crimes, é praticamente uma máfia.  O sempre sinistro Jack Palance interpreta um ator sufocado, que praticamente não consegue sair da sua sala com as visitas indesejadas de empresários, produtores, amigos e amantes. Pode-se dizer que o filme é sobre um ator que recebe fantasmas em sua casa. Só não é uma obra-prima inquestionável da história do cinema porque falta intensidade na direção de Aldrich em boa parte do filme (mas não no desfecho, extremamente impactante). Imagino um texto desses na mão de um Cassavetes ou de um Fassbinder… Mas ainda sim é uma obra ímpar do cinema americano dos anos 50.

03 Movie Crazy (1932), de Harold Lloyd e Clyde Bruckman

Apesar de não ser creditado, Lloyd dirigiu boa parte do filme. É um gênero à parte dos filmes sobre Hollywood: as comédias em que alguém anarquiza os estúdios. Já existiam na década de 1910, em His New Job, por exemplo, um dos primeiros filmes de Chaplin. Nos anos 1930, Buster Keaton tentou fazer o seu (Free and Easy) e se deu mal. Keaton escorregava com o cinema falado, coisa que Lloyd dominava tranquilamente. Seu humor era tão físico quanto intelectual. Há momentos absurdos aqui, como aquele em que o personagem de Lloyd, mais um caipira que tenta a sorte em Hollywood, veste sem querer o terno de um mágico numa festa chique e aí… tudo acontece! Qualquer semelhança com a bagunça causada por Peter Sellers em Um Convidado Bem Trapalhão não é mera coincidência. 

02 A Última Ordem (1928), de Josef von Sternberg

Não é exagero ver Sternberg como o grande cineasta da virada dos anos 1930. O domínio de qualquer possibilidade de cinema que ele demonstra nos filmes daquele período é assombroso. O que é O Expresso de Xangai, por exemplo? Um filme em que tudo, até uma guerra civil, é pretexto para que se filme um rosto, o de Marlene Dietrich. E esse rosto era filmado como o mais bonito do mundo.  Em A Última Ordem, ao contrário, há uma história poderosa por trás do amargura no rosto de Emil Jannings. Ele faz um nobre russo que, após a revolução de 1917, precisou fugir para os Estados Unidos. Acaba tentando a sorte como figurante em Hollywood. Em Sternberg, o amor sempre tem o poder de destruir o homem. Aqui não é diferente, mas o cinema, mesmo que por vias cruéis, oferece-lhe uma redenção.

01 Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder

Um primeiro lugar esperado. No entanto, demorei a virar fã dessa obra-prima. Quando vi pela primeira vez, ainda num período de crença total na imagem, me incomodei com a narração que costura toda a obra. Depois fui descobrindo que o cinema não era só imagem e que as palavras, escritas ou faladas (que são coisas bem diferentes, diga-se de passagem) eram fundamentais. E Crepúsculo dos Deuses é um dos filmes com as palavras mais belas que já ouvi, até porque elas são ditas de forma impecável. O tom ironicamente manso da narração-fantasma é coisa de mestre. E a cereja do bolo está na cena em que Norma Desmond pede o close-up final e Billy Wilder não realiza o desejo da velha atriz: a imagem perde o foco antes de se aproximar totalmente do rosto.  Um close-up ali jogaria todo o filme no lixo, não era momento de misericórdia. Mas Billy Wilder é dono de uma crueldade que só os gênios e os criminosos podem ter.