hong sang-soo e o cinema

Existe um aspecto na obra recente do sul-coreano Hong Sang-soo que me agrada muito. É a forma como ele insere o cinema dentro de suas narrativas. Curioso, pois qualquer cineasta que concentra parte da obra em torno de protagonistas que realizam filmes, naturalmente acaba tachado de metacineasta ou algo do tipo. Não é o caso. A impressão é que o grande desejo de Sang-soo é exatamente virar esse jogo. Mostrar que o cineasta e,  consequentemente, o cinema, não apresentam muitas diferenças da vida comum.

É esse elemento que garante boa parte da força de Conto de Cinema, um dos filmes mais instigantes, mesmo que discretamente, da última década. Temos um filme dentro do filme, fato que só é revelado posteriormente. Mas não há cisão.  A primeira metade termina com o protagonista (que é interpretado pelo próprio diretor fictício) desesperado tentando o suicídio. Corta para um sujeito saindo da sala da exibição, é uma retrospectiva daquele cineasta. Logo sabemos que o diretor, a mesma figura que urrava pela mãe na cobertura de um edifício, está internado em estado grave. Mais adiante,  homem que estava na sessão, que é um dos amigos do cineasta, encontra a atriz do filme e a persegue da mesma forma impulsiva que o protagonista suicida. Ele revela que toda a trama é baseada em sua vida. Conto de Cinema segue com a relação entre os dois.

Parece confuso, mas não é. Pelo contrário. O genial é que, com pequenas alterações e a ausência do momento em que há a saída do cinema, as cenas da vida real poderiam muito bem ser uma continuação natural da trama apresentada. E isso Sang-soo evidencia não buscando nenhuma diferença na forma de filmar, com destaque para o inusitado uso do zoom. Brilhante o modo como Sang-soo coloca esse encontro – encontro é a melhor palavra, não há separação entre a vida e o cinema, mas um encontro, eles dividem o mesmo universo.

No filme seguinte, Mulher na Praia, essa questão torna a aparecer. Sang-soo novamente apresenta um cineasta como protagonista. Dessa vez, ele vai para a praia para conseguir terminar um roteiro. É praticamente um filme-manifesto dessa forma particular de enxergar o cinema. O protagonista é possivelmente o cineasta mais gente como a gente de todos os tempos. Talvez por questões de ego, cineastas costumam ser retratados como alguém à parte do mundo. Uma pessoa atormentada, densa, poética, genial, excêntrica, os adjetivos não terminam. Aqui não, o cineasta é um cara normal (e olha que ele é conhecido, as pessoas sabem quem ele é), fala besteira, bebe, quer transar com a namorada do amigo. Como a própria menina define: “você é um sul-coreano comum”.

Em um sintomático momento de auto-referência do filme, o protagonista elogia o trabalho musical de sua paquera. Diz: “eu gosto, suas músicas são comuns, você canta como uma pessoa normal”. Ele está falando do próprio filme, tanto do modo sem verniz que Sang-soo aborda os relacionamentos amorosos (que sempre acompanham seus cineastas), quanto do seu jeito de filmar. Mais uma vez, o exagerado uso do zoom é decisivo. Sang-soo raramente recorre à decupagem.  Na maioria das cenas, em vez de cortar de um plano geral para um primeiro plano, ele usa o zoom como qualquer amador faz em sua câmera.

Hong Sang-soo, no fim, parece defender o direito dos cineastas de serem homens comuns.