viagem ao princípio do mundo

Se os textos já estavam raros, nesse mês eles desapareceram completamente. Mas há um motivo bom: estou rodando a Europa desde o fim de janeiro, aproveitando para conhecer o leste europeu, um sonho antigo. No momento estou em Cesky Krumlov, pequena cidade no sudoeste da República Tcheca. Amanhã sigo de trem, via Áustria, para Ljubljana, capital da Eslovênia.

Claro que eu não esqueceria das artes nessa passagem pelo continente europeu. Minha mala voltará com generosos quilos a mais: caixas de filmes, discos, livros. A aquisição mais valiosa é a caixa com 22 filmes e um livro do Manoel de Oliveira, lançada no ano em que ele se tornou centenário. Uma preciosidade comprada por um preço bem acessível.

Também aproveitei para ter experiências cinematográficas diferentes. Ontem conheci a sala de cinema do castelo principal de Cesky Krumlov. Deve ter sido instalada na virada dos anos 1920, a julgar pelo catálogo de filmes que a nobreza local podia curtir. Muita coisa alemã, evidentemente: Fritz Lang, Murnau e outras obras da época. Me chamou a atenção o cartaz de A Grande Parada, obra-prima de King Vidor. Para completar, a pequena sala estava exibindo os primeiros filmes realizados na região, pequenos documentários à la Lumière da cidade. Definitivamente, não é todo dia que se entra numa sala de cinema de um castelo.

Ainda na República Tcheca, em Praga, pude conhecer a FAMU e a NFA. FAMU é a escola de cinema que revelou praticamente todos os grandes nomes do Novo Cinema Tcheco dos anos 1960. Um prédio discreto, quase escondido, na frente do rio Vltava. Dei uma olhada no programa de ensino atual e há coisas bem legais, principalmente as aulas de um curso especial para estrangeiros.

Mas o melhor em Praga foi assistir a um filme menos badalado de Max Ophüls na charmosa sala do National Film Archive, espécie de Cinemateca Tcheca. Precisei virar membro já que a sessão era exclusiva. Sem problemas (até porque a moeda tcheca é fraca, tudo aqui é barato), bom que sempre terei um cineminha pra ir em Praga. E a programação é excelente, não deixa nada a dever para a Cinemateca Francesa, por exemplo. Nesse mês, havia mostras sobre Dreyer, Monicelli e Blake Edwards, além de uma que propunha uma tabelinha entre Alemanha e Itália. Nessa que exibiam A Mulher de Todos, o único filme italiano de Ophüls, de 1934.

Um Ophüls bem abusado, cheio de experimentações com a câmera. O travelling já tem destaque total, principalmente nas primeiras sequências. Há um diálogo preciso com a montagem, algo que até abre espaço para brincadeiras: numa das cenas, um travelling repentino reenquadra, numa bela trucagem, a mesma imagem. Num filme de vanguarda, algo corriqueiro; num melodrama, difícil ver. A protagonista acabara de dançar a valsa e Ophüls solta os diabos.

Infelizmente a segunda parte é apressada. Pela protagonista rica e a direção inventiva, o filme deveria ter mais fôlego. Mas já dá pra sacar o talento do cineasta para lidar com protagonistas femininas e seus dilemas. Poderia ser uma obra-prima, é apenas um grande filme.

Já na Cinemateca Francesa, vi o primeiro longa dos Irmãos Taviani: Os Subversivos, de 1967. A impressão é a de que estamos vendo um filme de Godard se ele tivesse continuado com a estética dos primeiros filmes (Acossado, O Pequeno Soldado) no momento em que inserisse temas políticos na sua obra. Não à toa, há uma citação a Pierrot Le Fou. Trata-se de um típico filme do cinema moderno dos anos 1960; coloca, de cara, o espectador no fogo e esconde a mangueira para que ele possa apagá-lo. Temos vários personagens, uma série de acontecimentos, tudo ao mesmo tempo, a única ligação é o velório de um nome importante do Partido Comunista Italiano. Num trabalho de montagem tão exemplar mas que às vezes se torna cansativo, há uma busca pela continuidade nos jump-cuts. Os Subversivos consegue ser uma obra bem redonda dentro de uma estrutura toda fragmentada. Só deve perder para alguns filmes de Bertolucci como o mais Nouvelle Vague do cinema político italiano. Por sinal, ele fazia parte de uma mostra da Cinemateca que discutia a existência de uma Nouvelle Vague Italiana.

Agora sigo viagem. Se tudo der certo, tudo acaba na Hungria.