o sublime

Duas aulas de arranjo que só a soul music poderia dar: Oh How I’d Miss You, com Marvin Gaye & Tammi Terrell e My Deceiving Heart, com The Impressions.

A primeira é a canção de despedida da obra-prima United, o primeiro disco do “casal” mais legal da Motown, lançado em 1967. O que acho mais forte nela é o encontro da melancolia com uma vibração impactante. Afinal, é uma música sobre saudade. E saudade amorosa é isso, um misto de frio na barriga, euforia e tristeza. Hal Davis produziu a canção e conseguiu colocar exatamente esse sentimento no arranjo. Isso é uma característica forte da Motown, os arranjos dialogam diretamente com a alma da canção. Coisa de um mundo em que a sensibilidade sobra.

Oh How I’d Miss You começa festiva, os sopros parecem introduzir uma explosão de alegria, mas Tammi anuncia: seu coração está apaixonado e seu amor não está lá. E há vários detalhes que fazem a música crescer, do diálogo entre o vibrafone e o piano elétrico soando como um cravo (ou é um cravo mesmo com sonoridade sintetizada) antes das estrofes, ao coro discreto que vai mantendo a expectativa para o refrão. A base musical dos Funk Brothers é precisa, redonda como sempre.

É claro, há também Marvin Gaye e Tammi Terrell. Acho o mais intenso de todos os duetos entre homens e mulheres do universo soul. Ao contrário de muitos discos do gênero em que existe uma certa frieza, uma impressão de que cada artista gravou sua parte em um canto do planeta, Marvin e Tammi parecem cantar abraçados, e isso faz uma diferença tremenda. A bela harmonia entre as duas vozes no refrão comprova isso.

Agora My Deceiving Heart, pequena jóia do gênio Curtis Mayfield, lançada no seu último álbum ao lado dos Impressions, o The Young Mod’s Forgotten Story, de 1969. Tudo começa com um piano que deixa no ar um sugestão blues, mas Curtis e sua voz singular entra direto com a faca no coração: “I could die”. Pronto, que frase para começar uma canção! E a balada segue firme até o refrão, um orgulho de refrão, com coro, sopros, algo que já antecipa muita coisa da carreira solo de Curtis. Mas o que é matador, discretamente matador, é o coro suave – fazendo a mesma harmonia das cordas – após o refrão. É um pequeno detalhe que faz toda a diferença, coisas que mestres do arranjo sabem sacar para colocar um algo mais na canção. Na segunda estrofe, as cordas entram forte, completando a melodia, nunca repetindo, levando-a para outros caminhos. Importante citar o nome do arranjador desse disco dos Impressions: Donny Hathaway, que no mesmo ano lançava seu primeiro single. Nos anos 70, se tornou protagonista decisivo da música negra.

Oh How I’d Miss You e My Deceiving Heart são duas canções que sintetizam muito bem a riqueza da soul music. Além disso, ressaltam outro ponto importante: como as gravações de soul, mesmo se tratando de baladas, são extremamente pesadas.

with the beatles

With The Beatles

Quem cuida da obra dos Beatles é um gênio da publicidade. É incrível como, de tempos em tempos, a gente é obrigado a escutar as mesmas músicas que já ouviu infinitas vezes. Com o lançamento das versões remasterizadas de toda a obra do grupo, novamente só se fala neles. É assim há pelo menos vinte anos. Sabem como ninguém dosar os lançamentos, sempre é um acontecimento grandioso, algo que não acontece com outras super bandas da história do rock.

Durante os anos em que cultivei minha beatlemania, extremamente solitária, mas proveitosa, tive pra mim que o With The Beatles era uma obra-prima incontestável. Depois de um bom tempo, comecei a descobrir que muita gente o considera um patinho feio dos primeiros anos da banda. Inclusive isso foi debatido num programa de rádio que fiz com outros beatlemaníacos. O consenso foi que With The Beatles era um disco meia boca, feito nas coxas.

Pra mim não. É até hoje o meu favorito dos anos “inocentes” dos Beatles, embora todos os outros sejam perfeitos (só o For Sale que acho quase). E o que eu reverencio no famoso disco da capa sombria, uma das mais plagiadas da história? Ele tem uma energia incrível, a bateria do Ringo faz jus ao nome da banda e, sem deixar a pulsação dançante de lado, dá um peso que não se ouvia no rock inglês. Tudo começa com Lennon berrando na irresistível You Won’t Be Long e termina com Lennon berrando ainda mais em Money (que por sinal, parece outra música nessa nova edição!). Ali percebi que aquele cara que gritava tanto seria uma figura importante pra minha vida inteira.

Também foi o disco que me apresentou à Motown. E não qualquer uma Motown, às feras. Smokey Robinson de You Really Got a Hold on Me, a sonoridade das girl groups de Please Mr. Postman e o chefão Berry Gordy, um dos autores de Money (That’s What I Want). Pronto, a porta do paraíso da soul music estava escancarada.

A Hard Day’s Night pode ser emblemático, Help! pode ser o visionário, o Please Please Me pode ser o mais urgente, mas a minha ingenuidade preferida dos FabFour é o With The Beatles.