o eterno retorno

Os primeiros filmes a colocarem o cinema em suas narrativas se preocuparam com o espectador. Em O Caipira e o Cinematógrafo, do inglês R. W. Paul,  Aqueles Chapéus Horríveis, de Griffith e A Carreira Dramática de Mabel, de Mark Sennett, temos personagens que não sabem lidar com as imagens em movimento: fogem correndo com medo do trem de Lumière ou sacam a arma em direção à tela para matar o vilão.

Eis que surge, na primeira encarnação de seu clássico personagem, Charles Chaplin. Pois Corrida de Automóveis para Meninos, de 1914, evidencia a câmera. Na obra dirigida por Henry Lehrman, um filme sobre uma corrida de carros está sendo realizado. O fio narrativo é mínimo, Chaplin teima em entrar na frente da câmera, fato que deixa o homem que filma (interpretado pelo próprio Lehrman) furioso. Grosso modo, estamos diante do duelo entre documentário e ficção.

Não deixa de ser uma reprise do primeiro embate da história do cinema:  Lumière e Méliès, o cinema que deve registrar a realidade e o que deve criar o artifício. Claro que as etiquetas não devem ser grudadas, basta lembrarmos de um dos diálogos fundamentais de A Chinesa, de Godard, que propõe a inversão: Méliès era o documentário pois filmava o imaginário do mundo nos passos iniciais do século vinte, aquilo que estava na cabeça das pessoas. Lumière, em contrapartida, estava próximo do que pintavam os Impressionistas. Era, portanto, a ficção.

Pois em Corrida de Automóveis para Meninos o confronto é retomado. Há o artifício mascarado – a corrida de carros que é enquadrada na câmera de Lehrman nos moldes dos “documentários” de Lumière – e o artifício assumido – Chaplin, o clown, cheio de gestos exagerados, em outra dimensão dramática.

O filme deixa claro que, embora a corrida fosse o foco inicial, aquele vagabundo divertido abocanha os olhares, ou melhor, a câmera. Ela é a única ali a querer Charles Chaplin. A ficção ganha do documentário. Lembramos novamente de Godard e da inscrição de Lumière na sala de projeção em O Desprezo: “o cinema é um arte sem futuro”. O êxito imediatamente posterior do personagem de Chaplin e do cinema de ficção em geral apenas carimbou: para ter futuro, o cinema teria que abraçar o artifício assumido.

E a partir do momento em que o cinema escolhe o caminho da ficção, começa rapidamente um sentimento de mea culpa em relação ao “real”. Talvez isso explique esse eterno retorno, com as devidas diferenças de cada época, à questão. Praticamente todas as rupturas, de Dziga Vertov ao Neo-Realismo, dos Novos Cinemas dos anos 1960 ao Dogma 95 e a Abbas Kiarostami nos anos 1990, retomam a necessidade de discutir, inflamar, questionar e tentar resolver essa dívida infinita com o real.