quarenta graus acima de dadá

É no manifesto 40° acima de dadá que Pierre Restany declara as principais intenções do Novo Realismo. Escrito para a primeira exposição coletiva do grupo, realizada em maio de 1961, o texto define: “assim é o Novo Realismo, uma forma preferivelmente direta de recolocar os pés na terra, mas quarenta graus acima do zero dadá, e no nível preciso em que o homem, se consegue se reintegrar no real, o identifica com sua própria transcendência que é emoção, sentimento e finalmente poesia, ainda”.

“Recolocar os pés na terra”, “se reintegrar ao real”. Para Restany, a grande questão da arte dos anos 1960 foi a revitalização do realismo. Nesse sentido, a Pop Art foi notória, mas os nomes a se destacar, além do grupo francês, são os de Jasper Johns e, principalmente, Robert Rauschenberg. Foram artistas que, ainda nos anos 1950, começaram a questionar a onipresença da arte abstrata e trazer elementos do cotidiano para as telas. Uma outra possibilidade para além da arte abstrata que deixou Restany bastante interessado. “A obra de arte perde seus controles e só se torna submetida à urgência expressiva do criador, torna-se um ato cada vez mais gratuito, ameaçado pelo automatismo e que perde a significação para outrem”. Na virada dos anos 1960, Restany observava o desgaste natural do Expressionismo Abstrato e seus afluentes.

Mas é o Surrealismo que recebe as palavras mais ásperas de Restany. Ele deixa claro, André Breton falhou ao tentar anexar o dadá a seu manifesto.  “Aquém do câncer doutrinal surrealista e além de todos os ‘ismos’ sucessivos, falsamente revolucionários, da história da arte, dadá surgia na sua pureza original, como a verdadeira revolução, a grande ruptura com a continuidade da tradição, da lógica humanista”. Protesto compartilhado pelo dadaísta histórico Hans Richter, que em seu livro sobre o dadá deixa evidente as ressalvas à apropriação de Breton. Restany é mais incisivo: “o surrealismo foi a flor do mal que brotou desse estrumeiro”. Isso explica tamanha vibração com o aquecimento das idéias originais dadaístas.

E o que Restany considerava por quarenta graus acima de dadá? Para o crítico francês, o ready-made de Marcel Duchamp foi a principal contribuição dadaísta para o percurso da arte no século XX. E as obras dos Novos Realistas conseguiam dar uma finalidade aos objetos de Duchamp, recontextualizar aquele gesto de ruptura.

Bicycle Wheel, 1913 - Marcel Duchamp

Monogram, 1959 - Robert Rauschenberg

Restany festejava, Marcel Duchamp condenava. O artista não aprovou a apropriação de seus objetos, pelo contrário. “Quando descobri os ready-mades, minha idéia era a de desencorajar a estética. Eles pegaram meus ready-mades e descobriram a estética neles. Atirei-lhes à cara o porta-garrafas e o mictório, e eles agora o admiram por sua beleza estética”. É importante observar o contexto, Duchamp foi figura seminal, mas a estética eternamente desencorajada perde qualquer relevância. Na década de 1910, em meio a tantos uivos da arte moderna, a sua ruptura era fundamental. Nos anos 1950, a redescoberta da estética se torna importante, definindo boa parte dos caminhos da arte contemporânea.

O que assuta em Duchamp é a proximidade. Infelizmente ainda é cultura dominante que a arte precisa manter um abismo entre obra e espectador. Talvez a grande questão dos Novos Realistas, tanto os franceses quanto os norte-americanos, foi a retomada da distância na arte realizada a partir do cotidiano. Mas era uma distância que exigia atividade do espectador.

Duchamp foi um cara que em certo momento fez questão de buscar elementos que provocassem, nas suas próprias palavras, uma indiferença visual. Os Novos Realistas partiram de Duchamp para tentar unir o olho e a cabeça. São conversas: não precisam estar abraçadas para instigar.

____________________________________________________________

Mais sobre o Novo Realismo:

Salto no vazio

Power to the nanas!

Tinguely, demiurgo da fantasia mecânica

salto no vazio

Antropometrias da época azul, de 1960.

Um dos mais espirituosos comentários sobre Yves Klein está num diálogo do filme O Amigo da Minha Amiga, de Éric Rohmer. Na cena, a jovem protagonista lamenta que em sua vida só aparecem homens burocratas. Ela diz:

Talvez eu queira o impossível, não sei.  Na realidade, eu precisava de um artista de verdade, de um verdadeiro espírito artístico, mas com a aparência de um jovem executivo dinâmico. Enfim, estou sonhando.

Sua amiga então responde:

Isso já existiu. Conhece o Yves Klein?

Yves Klein era o homem-espetáculo dos Novos Realistas. Não à toa, acabou centralizando todos os holofotes em torno dele. Hoje, muita gente nem lembra (ou sabe da existência) daquele grupo de artistas, mas Yves Klein permanece como uma forte referência da arte francesa do pós-guerra. Foi um artista que conseguiu imprimir um tom mítico em praticamente tudo que fez, das pinturas monocromáticas ao tom de azul patenteado, da lendária exposição Le Vide, que consistia numa galeria de arte absolutamente vazia (Camus apareceu e deixou no livro de presença: “com o vazio, plenos poderes”), à emblemática fotografia de Klein pronto para voar, da sinfonia de uma nota só às pinturas feitas com lança-chamas e corpos de mulheres nuas.

Com a palavra, Yves Klein: “pessoalmente, eu nunca tentaria espalhar tinta sobre o meu próprio corpo e me tornar um pincel vivo; ao contrário, preferiria vestir o meu smoking e usar luvas brancas. Não pensaria nem mesmo em sujar minhas mãos com tinta. Desapegado e distante, o trabalho de arte precisa se completar diante dos meus olhos e sob o meu comando. Portanto, logo que a obra está realizada, permaneço ali – presente na cerimônia, imaculado, calmo, relaxado, digno dela, e pronto para recebê-la como ela nasceu no mundo tangível”.

No fim, a persona de Klein é impossível de ser desassociada de sua arte. A trajetória meteórica ainda confirma as palavras de Jean Tinguely, de que o espetáculo só é realmente um espetáculo quando tem vida curta. Yves Klein morreu em 1962, aos trinta e quatro anos, no auge de sua efervescente carreira.

Yves Klein e seu lança-chamas em ação.

power to the nanas!

Niki de Saint Phalle prestes a atirar em sua tela.

Entre os Novos Realistas, Niki de Saint Phalle foi aquela que levou aos extremos a idéia de espetáculo. Na pintura abstrata, apostou nos tiros em direção à tela. Tamanha violência acompanhava as palavras da artista: “eu atiro no papai, em todos os homens, em todos os homens importantes, nos homens gordos, em meu irmão, na sociedade, na igreja, no convento, na escola, na família, na minha mãe…”

É sabido que Saint Phalle teve uma infância bastante traumática. A arte apareceu em sua vida, inclusive, durante uma temporada no hospital. A expulsão dos fantasmas continuou nos anos 1970, quando ela realizou o raro longa-metragem Daddy, que traz a história de uma criança abusada pelo pai. No início de 1960, a tela parecia ser a sua principal válvula de escape.

Por mais que a imagem de uma ruiva graciosa e sorridente compondo pinturas abstratas através de tiros seja algo inesquecível, prefiro o desenrolar de sua carreira nos anos seguintes. A violência escancarada deu lugar às Nanas, psicodélicas esculturas de figuras femininas estilizadas. Como descreveu Pierre Restany: “barrigudas, carnudas e triunfantes”.

Os tiros na tela são o retrato de uma época, é claro. É preciso ter o contexto para abraçar aquilo. E esse é o perigo: muito dessa postura contracultural típica dos anos 1950/60 continua sendo replicada em várias esquinas. O que fica é apenas o gesto, e um gesto vazio. Acontece o mesmo, por exemplo, com o emblema Seja Marginal, Seja Herói, de Hélio Oiticica. Fora do contexto, é uma idéia extremamente perigosa para se cultuar em nossos dias.

Hoje, aprecio a subversão pela sutileza. Abordar um tema tabu com suavidade pode ser mais contundente. Já está tudo tão escancarado no mundo, é preciso um pouco mais de invisível. É por isso que as Nanas de Niki de Saint Phalle permanecem como obras-primas da arte contemporânea. Naturalmente, ainda mais pela postura da artista, elas se tornariam estandartes do feminismo nos anos 1960. Mas se há um tom decisivo nas obras, é o do feminino. Saint Phalle, por sinal, recusava convites de publicações sobre “a arte de mulheres”. Sábia, ela compreendia que isso é uma tremenda ficção.

Foi na Suécia, em 1966, que Saint Phalle realizou a sua Nana mais impressionante. Hon, construída em parceria com Jean Tinguely e o escultor sueco Per Olof Ultvedt, tinha 27 metros de comprimento e se apresentava em posição de parto. A porta, sua enorme vulva, ficava aberta para quem quisesse se aventurar. Dentro, hostess introduziam os três andares com direito a bar, planetário, terraço panorâmico, carrossel, cinema, túnel do amor e cabine telefônica.

Hon foi certamente o maior dos espetáculos dos Novos Realistas. A idéia de entrar dentro da obra – e que idéia incrível, exigir do espectador o caminho inverso da vida para encontrar dentro da figura feminina um mundo maravilhoso –, ressaltava um dos pontos fundamentais do grupo francês: oferecer um espetáculo, mas exigir a participação ativa e decisiva do espectador. Por sinal, naquela década, o entrar na obra, literal ou não, se tornou questão de vida ou morte. Saber se relacionar com o espetáculo também.

Power to the Nanas: Hon, o espetáculo de Saint Phalle no Museu de Estocolmo em 1966.

tinguely, demiurgo da fantasia mecânica

Niki de Saint Phalle e Jean Tinguely, a dupla dinâmica dos Novos Realistas

Em seu ótimo livro sobre Robert Rauschenberg, Calvin Tomkins recorre a um artista do outro lado do Atlântico para introduzir a década de 1960. Uma tarefa desafiadora. Afinal, como dizer, o que destacar para simbolizar o início daqueles anos pródigos em tantas coisas, ainda mais em se tratando de arte. Preciso, Tomkins narra a epopéia que o artista suíço Jean Tinguely realizou nos jardins do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque no ano de 1960.

A obra em questão é a famosa Hommage à New-York, grandiosa engenhoca recheada por bicicletas, carrinhos, rádios, uma máquina de lavar, pequenas obras de artistas amigos e até um piano de cauda. Foi produzida por Tinguely durante três semanas. Hommage à New-York se auto-destruiu em trinta minutos para espectadores extasiados, mais ou menos como aqueles que urravam ao ver o The Who quebrar o palco inteiro. Não à toa, entre dentes raivosos e abraços cheios de cinismo e genialidade, o espetáculo foi uma questão central  naqueles anos. Mais que existir, as coisas precisavam acontecer.

Apesar de alguns momentos de destruição, como é o caso de Hommage à New-York, que hoje existe apenas em registros, recordações e na história, Tinguely conseguiu manter sua obra, com autoridade, nessa corda bamba. O grosso de sua criação consegue se manter tanto em existir, quanto em acontecer, entre o instante do happening e a solidez do objeto de arte tradicional.

A solidez: suas esculturas cinéticas, herança de Marcel Duchamp levada às últimas consequências, são máquinas extremamente estéticas, ou seja, cumprem o papel de uma escultura, mesmo que em seu bailado mecânico e desajeitado estejam longe de qualquer modelo tradicional. Não por acaso, várias obras de Tinguely respiram tranquilas em espaços públicos. Apesar da recorrência de materiais do cotidiano, não se tratam de ready-mades. Existe, pelo contrário, um enorme trabalho de transformação estética.

O instante:  as esculturas também são objetos vivos, estão sempre jogando com o imprevisível. Tinguely trabalha exatamente com essa via dupla, a relação entre o ser e o acontecer, um objeto que pode ser olhado, mas que também devolve o olhar. O espetáculo, no caso, não é promovido diretamente pelo artista, mas pela obra. Como sentencia o próprio Tinguely sobre a sua Hommage à New-York: “é essa máquina que faz o espetáculo e ela precisa se auto-destruir, pois uma vida longa não é espetáculo”. 

Quando o crítico francês Pierre Restany decreta, em 1960, a existência do Novo Realismo – reunindo figuras distintas como Yves Klein, Arman, Martial Raysse e Tinguely –, ele observa que o grande parentesco entre os artistas é o espetáculo da metamorfose do cotidiano. Essa turma genial realmente conseguia reunir as duas tendências, algo que ainda começava a se aproximar nos Estados Unidos. Havia a metamorfose do cotidiano, por exemplo, nos trabalhos de Rauschenberg e Jasper Johns, e os happenings teorizados e eletrificados por Allan Kaprow.

Para os Novos Realistas, além da obra em si, o espetáculo era essencial. Isso explica a recorrência de grandes atos, a partir do final dos anos 1950, como as pinturas de Yves Klein feitas com lança-chamas e corpos de mulheres nuas, os tiros de tinta nas telas de Niki de Saint Phale e os incríveis Métamatics de Tinguely, máquinas construídas para produzir pinturas abstratas. Há, é claro, uma grande dose de ironia nisso tudo. A arte abstrata, saudada durante a década de 1950 como um grande gesto de sensibilidade, era realizada sob o filtro de coisas suaves como lança-chamas e espingardas.

No caso de Tinguely, a provocação soava ainda mais contundente. No fundo, Yves Klein e Niki de Saint Phalle apenas trocaram o pincel por outros meios. O homem ainda era o dono da sensibilidade. Já nos Métamatics de Tinguely, é a máquina que produz, sozinha, o abstrato. A máquina como matéria-prima de sensibilidade. Nessa fina ironia, Tinguely dialoga novamente com as idéias de Duchamp.

A principal luta de Marcel Duchamp foi contra a ausência de idéias na arte.  Para ele, sensibilidade era, acima de tudo, pensar. A obra de arte deve ser um resultado de uma busca intelectual. Em outras palavras: consciente. Foi por isso, como definiu Pierre Cabanne, que ele acabou trocando a “pintura-pintura” pela “pintura-idéia”. Com os Métamatics, Tinguely mostra que a sensibilidade à flor da pele do Expressionismo Abstrato, no fundo, podia ser feito por uma máquina, um objeto sem coração.

É lógico que o Expressionismo Abstrato não pode ser visto como um corpo fechado. Nem todos os pintores realizavam obras “espontâneas” ao modo de Jackson Pollock. É o caso de Willem de Kooning, por exemplo. Mas foi essa a grande idéia vendida. Harold Roserberg clamava pela tela como uma arena, o artista deveria agir. Tudo que Duchamp desprezava, essa imagem do pintor como uma fera em ação, “la bête”.

Um grande problema dessa concepção de arte é que o espectador acaba vendo apenas o resultado da ação. A melhor coisa num quadro de Jackson Pollock seria, na verdade, vê-lo pintar. O diferencial em Tinguely – e em diversos momentos dos outros Novos Realistas – é que a ação está na obra e não restrita ao ato criativo. Porque as máquinas de Tinguely estão tanto na esfera da escultura-idéia, quanto na esfera da ação, do happening, do espetáculo puro.

Nesse ponto, Tinguely mostra que o artista pode ser intelectual, o homem das idéias, sem abandonar a mágica. Ele pode ser o gênio e a besta. O efeito catártico de suas obras é inegável, nâo à toa faz tanto sucesso com crianças, que se entregam aos ruídos, aos movimentos, ao lúdico das máquinas cheias de vivacidade. De Restany, a definição é perfeita: “Tinguely é um colossal demiurgo da fantasia mecânica”.

Abaixo, vídeo de um abusado Métamatic, obra de 1959. 

Aqui a grandiosa Méta-Harmonies II, de 1979. No primeiro vídeo, a visão geral da obra. No segundo, uma edição com os pequenos detalhes de suas entranhas.

white paintings in furs

Ainda sobre jornalismo, dois livros da série “compras inacreditavelmente baratas na Amazon”. O primeiro, de Calvin Tomkins, é Off The Wall – A Portrait of Robert Rauschenberg, ótimo livro sobre a vida do artista norte-americano. É uma biografia de tom jornalístico, fluída e objetiva, mas repleta de mergulhos importantes. O primeiro capítulo, por exemplo, é basicamente uma reportagem sobre o prêmio conquistado por Rauschenberg na Bienal de Veneza em 1964. Está tudo ali, as vaias para o espetáculo do power-trio Rauschenberg, John Cage e Merce Cunningham, as festas de Leo Castelli e a confusão em torno da premiação.

O mais interessante é que o livro também procura contextualizar as grandes figuras que trocaram idéias (e algo mais) com Rauschenberg, como Wilhelm de Kooning, Jasper Johns e o próprio John Cage. Ali descobri que a famosa composição 4’33, mais conhecida como “silêncio”, foi feita imediatamente após o músico conhecer as pinturas em branco de Rauschenberg. O livro também põe em foco um período emblemático da arte norte-americana, o momento de transição entre dois fortes estouros, o Expressionismo Abstrato e a Pop-Art.

O outro livro, esse uma pechincha absurda (atualmente há exemplares por menos de 5 dólares), é um item obrigatório para quem gosta de música e jornalismo. All Yesterday’s Parties: The Velvet Underground in Print – 1966-1971. Organizado por Clinton Heylin, o livro apresenta mais de quarenta reportagens sobre a banda nova-iorquina. Tem de tudo, desde textos de fanzines até matérias publicadas em grandes jornais. A última,  sobre o final da banda, é assinada por ninguém menos que Lester Bangs.

Curioso ver a primeira reportagem sobre o Velvet Underground, publicada em janeiro de 1966 no New York Times e intitulada Andy Warhol and His Gang Meet The Psychiatrist. A banda ainda era coadjuvante do Explosing Plastic Inevitable de Warhol, naquela ocasião aterrorizando um congresso de psiquiatras com Gerard Malanga e Edie Sedgwick no palco sob projeções e o caos sonoro do Velvet. Quem também esteve lá foi Jonas Mekas, que registrou alguns momentos de apresentação e inseriu trechos em seus filmes sobre Andy Warhol. Definitivamente um momento histórico.

três coisas que adorei em cildo

1. Não há turistas. Uma coisa que detesto em documentários é a presença de uma quantidade enorme de pessoas que nada tem a ver com o assunto, como se o objeto do filme precisasse de “gente relevante” para carimbar a sua importância. Em Cildo, quem faz esse papel é a própria obra de Cildo Meireles.

2. É um filme de cinema. Me encantou profundamente a forma como Gustavo Moura trabalhou a presença das obras de Cildo. Há uma preocupação em construir narrativas, em fazer o encontro da experiência cinematográfica com a experiência proporcionada pelas obras. Num espaço que, teoricamente, foi idealizado para o deslocamento de pessoas, há a incessante movimentação de uma câmera. Da mesma forma, o som, algo bem presente nas obras do artista, é trabalhado de forma criativa. Ao contrário da grande maioria dos documentários que caem de todas as árvores atualmente no Brasil, Cildo é extremamente cinematográfico.

3. E é claro, a presença de Cildo Meireles. Por mais que ele assumidamente não fique  muito à vontade para falar, há uma série de idéias maravilhosas que percorrem o filme. Como a referência do terceiro astronauta que não pisou na lua, a importância do medo, da falta dos pés no chão para aguçar a sensibilidade. No trecho que achei mais bonito, ao lembrar de um amigo preso, Cildo fala sobre a democracia que a arte conceitual representa aos artistas, das infinitas possibilidades de matéria-prima. Democracia que se reflete com a mesma intensidade nas inúmeras formas com que uma pessoa pode se relacionar com essas obras. E que Gustavo Moura conseguiu transpor para a sua experiência cinematográfica.

Cildo

a cabeça de touro

A cabeça de touro de Pablo Picasso aparece numa cena de A Chinesa de Jean-Luc Godard, quando as duas meninas maoístas brincam de tourada e se surpreendem com a criatividade do vizinho que, ao ver a cabeça do animal feita de guidão e selim, fica feliz por ter encontrado partes de uma bicicleta.

De um transformador para outro, A Chinesa faz parte de um ano pra lá de inspirado de Godard. Três obras-primas, contando com Duas ou Três Coisas Que Sei Dela e Weekend à Francesa. Era 1967, ano que preparava as grandes transformações de 1968. E nos três filmes, Godard está refletindo sobre aquele momento. Mas não só sobre isso, é claro.

O que mais gosto nos filmes de Godard é que eles parecem ser bem específicos e, ao mesmo tempo, um ensaio sobre tudo. Quando acabam, não sei bem o que vi, a única certeza é que algo enorme passou e mudou tudo de lugar. Alguns dos melhores – e mais políticos – momentos de A Chinesa são quando os protagonistas não falam de temas políticos, mas de arte.

Serge: a arte não reproduz o visível, ela inventa o visível.
Veronique: mas o efeito estético é imaginário.
Serge: mas esse imaginário não reflete o real. Ele é a realidade do seu
reflexo.

Godard se opõe a uma das mais tradicionais idéias do cinema: o reflexo da realidade. Para o cineasta, há sempre uma construção que  navega pela subjetividade, tanto de quem faz, como de quem olha. O exemplo dado por Serge mostra que é preciso considerar o olho que vê – o receptor -, o objeto visto – a obra em si – e a fonte de luz que ilumina – exatamente o contexto em que está inserido esse encontro entre objeto e olho. O salto em que a cabeça de touro vira bicicleta.

A Chinesa

ad infinitum

Quimera, 2003, Projeção e vinil adesivo, 250 x 415 x 280 cm, Regina Silveira

Como uma arte que se apropria de tantos elementos da realidade, acaba produzindo um resultado tão irreal? “Essa é a questão”, respondeu e abriu um sorriso Regina Silveira, que esteve em Porto Alegre para comentar um documentário didático sobre arte contemporânea do qual é protagonista. Irreal talvez não seja a melhor palavra, prefiro outro-real. Um real que não costuma ser imediatamente reconhecido e aceito por todos, mas que está totalmente exposto ali. Realidades deslocadas que podem assustar. Como diz Christian Zimmer sobre o público de cinema (mas poderia ser sobre todos os públicos): “eles vêem filmes para reconhecer, não para descobrir”.

Regina Silveira trabalha muito com esse deslocamento em elementos primários do nosso planeta: luz e sombra. Fala-se em distorção ou deformação, gosto mais de transformação ou até mesmo da formação, já que muitas vezes há realmente uma forma totalmente nova, uma forma que pode se alimentar do imaginário do objeto em si, mas que inevitavelmente acaba criando um novo imaginário, tanto na relação como na ausência de relação imediata.

Me salta principalmente a Quimera que ela exibiu em Bogotá, uma pequena lâmpada que produz uma enorme sombra. A impressão que tenho ao olhar uma imagem da obra é de ver uma enorme e imponente rainha com um assustador vestido negro e o rosto todo maquiado de um fantasmagórico branco. No fundo, a transformação de uma lâmpada que ilumina uma sombra gigantesca numa rainha gorda toda de preto não é tão absurda assim. Há um parentesco entre as imagens.

Um amigo enche o apartamento de retratos dele mesmo – todas as idades – para nunca esquecer que o próprio homem é um símbolo contínuo de transformação. Como também são as luzes e sombras tão apropriadas por Regina Silveira. O que acontece é que, muitas vezes, quando a transformação é posta em destaque, quando é assumida, assinada, pode causar repulsa em certas cabeças acostumadas. E o costume é o maior crime do universo.

Sobre a transformação, gosto das palavras de Picasso sobre a sua famosa cabeça de touro feita com partes de uma bicicleta “espero que ela seja encontrada um dia por um ciclista que irá reconvertê-la num selim e num guidão e que depois a bicicleta remontada seja novamente transformada numa escultura e depois numa bicicleta outra vez e assim por diante, ad infinitum”.

Tête de Taureau, 1942, Pablo Picasso.